Prestes a terminar a batalha
campal que, ao longo das últimas semanas, jogou o país numa tosca e virulenta
discussão eleitoral, ponho-me a pensar retrospectivamente.
Fui insistentemente monitorado. Talvez por não
ter temido a exposição pública, talvez por ter muitos conhecidos, talvez porque
me atribuam algum poder de influenciar pessoas e formar opiniões. Também há
muita inveja e mesquinharia entre as pessoas, mesmo entre as que se julgam mais
lúcidas e clarividentes. Algo disso sempre respinga nos relacionamentos e
contatos, ou no julgamento que uns fazem dos outros.
Não me senti de modo algum
“perseguido” ou “patrulhado”. Várias outras pessoas, pertencentes aos dois
lados da pendenga, registraram a mesma situação. Além do mais, comunistas têm
grande capacidade de resistir a este tipo de cerco. Cresci nele, vivi boa parte
da vida como minoria dentro da esquerda. Nunca me atrapalhou em nada. Longe de
mim, portanto, posar de vítima.
O ocorrido foi somente parte de
um jogo que abandonou regras procedimentais básicas, fixadas pela ética
pública, em troca de ganhos marginais de visibilidade e, quem sabe, de alguns
votos. Não frequento o “coitadismo”. Para mim, coitados são sempre os que batem
e atacam.
Agora, quando o rescaldo da
batalha começa a ser contabilizado, penso que os registros devem ser feitos, ao
menos para que se conheçam os novos termos do jogo político e cultural que
ameaçam passar a prevalecer entre nós. A decadência ética e política a que assistimos
na campanha eleitoral de 2014 não deveria ser confundida com a choradeira
lamurienta dos que não têm firmeza suficiente para suportar as “verdades” da
luta política. É um tema que teremos de discutir daqui para frente. Ele não
poderá ser largado no escaninho das reclamações, terá de ser procurado no setor de achados e
perdidos.
Duas manifestações foram
particularmente agressivas e antidemocráticas. Uma pessoa me fez saber que está
com “vergonha de ter sido sua aluna”, ao passo que outro ameaçou queimar todos
os meus livros. Ambos deixaram transparecer uma fúria assustadora, com a qual
nunca tive de lidar, nem sequer durante a ditadura militar. Houve quem prometeu
“reler meus livros” para descobrir em que degrau da escada eu tropecei de modo
tão vergonhoso. Arrogantemente, outros “lamentaram” minha posição, que teria
sido, para eles, uma “revelação” associada a uma espécie de troca de pele, a
uma metamorfose provocada por excessiva exposição aos raios e eflúvios do
grande capital. Uma alma caridosa disse ter pena de mim, um inflexível revolucionário disse que eu não passava de um
“intelectual de aluguel”, outro lembrou que sempre tive uma “alma tucana” que
finalmente teria vindo a público. E não faltou quem sugerisse que, por nunca
ter falado em gênero e sexualidade, eu certamente seria um macho-alfa a serviço
da submissão da mulher.
Foi cansativo, mas valeu a
pena. Passei a limpar minha rede de contatos, que estava
artificialmente inchada. Comecei a afastar e a bloquear quem não interage
comigo, quem agride terceiros só pelo prazer de me agredir, quem aparece para ironizar, zoar ou debochar, quem ofende, mente ou planta boatos, os exibicionistas, os grosseiros e os chatos, os
torquemadas que se limitam a julgar e a vomitar sentenças. Não perdi “amigos”,
longe disto. Se algum saldo positivo vier a sair destas eleições ele incluirá,
em lugar de destaque, a oportunidade que todos tivemos de aclarar os campos em
que nos encontramos, os limites que estamos dispostos a suportar, as maneiras
que escolhemos para discutir política e ideias, os valores que pretendemos
cultivar, o quanto achamos que gentileza, respeito e bons modos devem integrar o
relacionamento entre humanos.
Deveríamos todos – cidadãos,
militantes, apoiadores, analistas, jornalistas, políticos, intelectuais –
começar a fazer uma reflexão. A quem pode interessar esta inflamação irracional
que inundou as redes e está chegando às ruas? Os que se batem entre si são
democratas de diferentes colorações, com algumas ideias distintas e igualmente
preocupados com os destinos do país. Têm tradições que devem ser respeitadas e
que podem fornecer larga base comum para cooperações e trabalhos conjuntos.
Integram partidos diferentes, que ao lutarem pelo poder estão a extrapolar,
impulsionados por campanhas que perderam o senso das medidas, das proporções,
do razoável.
O confronto hoje não é entre
"nós" e "eles", mas entre "nós" e
"nós". O prosseguimento deste clima de sectarismo e intolerância não
pode ajudar à democracia, nem emprestar qualidade a ela. Um presidente será
eleito no domingo, mas segunda-feira a vida continuará. Quem vencer governará
um país bastante dividido e temos de torcer para que ele, seu governo, os
partidos e o Congresso se esforcem no sentido de promover uma recomposição.
Quando mais deixarmos que a irascibilidade, a violência verbal, a acusação
gratuita e a agressão tomem conta de tudo, mais difícil será para quem vier a
sair vitorioso das urnas. E pior será para todos nós.
6 comentários:
Prezado Marco Aurélio,
A reflexão é necessária e urgente. A vida é mais rica e complexa do que uma eleição. Ela é feita de contradições, mas também de mediações, como você escreve. Estou chocada com as posturas reacionárias relatadas em seu artigo, algumas delas beirando ao fascismo. Isso mostra o quanto o autoritarismo está entranhado entre nós e como é difícil, nesse ambiente de agressões baixas e desqualificadas, praticarmos as novas regras do jogo. Pois elas exigem respeito à pluralidade de idéias e convivência democrática. Mas como você mesmo disse: é preciso ter firmeza de propósitos e disposição. A vida continua e pulsa depois de domingo qualquer que seja o resultado eleitoral. Parabéns pelas suas sempre brilhantes contribuições ao debate!
Marisa Bittar
Prezado Marco Aurélio,
A reflexão é necessária e urgente. A vida é mais rica e complexa do que uma eleição. Ela é feita de contradições, mas também de mediações, como você escreve. Estou chocada com as posturas reacionárias relatadas em seu artigo, algumas delas beirando ao fascismo. Isso mostra o quanto o autoritarismo está entranhado entre nós e como é difícil, nesse ambiente de agressões baixas e desqualificadas, praticarmos as novas regras do jogo. Pois elas exigem respeito à pluralidade de idéias e convivência democrática. Mas como você mesmo disse: é preciso ter firmeza de propósitos e disposição. A vida continua e pulsa depois de domingo qualquer que seja o resultado eleitoral. Parabéns pelas suas sempre brilhantes contribuições ao debate!
Marisa Bittar
Obrigado pelo comentário e pelas palavras encorajadoras, Marisa. A vida seguirá mesma, pulsando mais forte que este debate doentio a que assistimos.Abraço!
Caro Professor:
Minha solidariedade às suas corretas reflexões e honestidade intelectual.
Continuaremos acompanhando os ensinamentos de quem mantém coerência entre ações e discurso sem se deixar embaçar por infantilidades de velhos e senilidades de jovens levados apenas pelo messianismo ingênuo.
De qualquer forma o senhor dá-nos a melhor lição que qualquer mestre pode passar para seus alunos: compromisso com a sua verdade e respeito pelo contraditório.
Saudações Democráticas!
Obrigado pelo comentário, V. Silva. Abraço
Professor, realmente vivemos um período difícil, de manifestações fascistas, violentas. Também senti na pele e perdi "amigos". Mas sigamos em frente. Parabéns pelas suas sempre brilhantes análises.
Abraços
César - SP
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