A época em que vivemos flerta o
tempo todo com a ideia de que esquerda e direita seriam conceitos que já não
teriam sentido. Não são poucos os que dizem que eles não servem mais para
explicar os embates políticos e os alinhamentos ideológicos.
Em parte por causa disto e em
parte porque o circuito político e intelectual está bastante confuso hoje em
dia, o surgimento de um manifesto falando em apoio da “esquerda democrática” à
candidatura de Aécio Neves provocou alguma celeuma. (O manifesto pode ser
encontrado e endossado em www.esquerdademocratica.com.br).
A celeuma encontrou duas traduções
típicas nas redes.
Uma diz que seria inapropriado (os
adjetivos usados não foram bem este) entender Aécio como um político de
esquerda, já que ele seria a quintessência do “neoliberalismo”. Os que assim
falaram, confundiram apoio com identificação. O manifesto jamais tratou Aécio
como sendo um político de esquerda, mas somente procurou expressar o apoio que a
ele dão alguns democratas e pessoas de esquerda que não se sentem representadas
pelo PT e que pensam que há outras esquerdas fora do circuito petista. São
coisas bem diferentes.
Deixemos de lado, por ora, a
questão de saber se se deve ou não definir o eventual futuro governo Aécio como
“neoliberal”. Observo, porém, que um governo se define de dois modos: por seu
programa, compromissos e aliados, e por seu desempenho efetivo. O governo Aécio
não começou, sequer se sabe se será eleito; portanto, não dá de antemão para dizer
que será "neoliberal". Nem mesmo se apelarmos para outros governos
apoiados pelo PSDB, pois eles existiram há muito tempo (1995-2002) e o mundo e
as circunstâncias mudaram demais. O próprio neoliberalismo já não é mais um
horizonte razoável hoje.
Quanto ao programa, aos
compromissos e às alianças feitas em torno de Aécio, não consigo ver em que
elas possam ser definidas como "neoliberais". Com o perdão da
simplificação: neoliberal hoje virou um chavão, usado para tentar desqualificar
certas posições. Não houve nada mais "neoliberal" no Brasil do que o
ciclo petista, que facilitou tudo para o grande capital financeiro e o mercado,
por exemplo, ainda que não tenha feito somente isto.
A segunda tradução explorou a
ideia de que esquerda e direita não fazem mais sentido, que seria melhor falar
em “progressistas e conservadores”, por exemplo. A esta ponderação, com a qual
não concordo, tenho respondido da seguinte maneira.
O conflito político que conta,
hoje, entre nós no Brasil, é o conflito entre duas formas de esquerda. Uma
delas, a do PT, precisa por a mão na consciência, se rever e se reformular, pois
decaiu praticamente ao rés do chão. Hoje, é difícil dizer que o PT represente uma
esquerda avançada. Não sabemos o que ele pensa, exceção feita à disposição de
continuar distribuindo bolsas. Em seus governos e em seus documentos, as reformas
estruturais são proclamadas, mas não são levadas à prática, nem desenvolvidas
teoricamente. Nele, não há mais valores democráticos profundos, de que são
feitas as esquerdas. Não há republicanismo, em que pese Dilma usar esta
expressão ad nauseam, o que pode ser
mais reflexo de uma carência do que de uma convicção.
A “outra” esquerda é na verdade
um universo plural. Seria mais certo falar em “outras” esquerdas. Entre elas, a
esquerda democrática é a que se contrapõe de forma mais típica à primeira
esquerda. Pretende, na verdade, atuar para estimular o PT a rever procedimentos
e a se reencontrar com sua própria história. Nesta segunda esquerda, portanto,
há lugar para setores do PT, assim como para do PSDB, para comunistas, liberal-socialistas,
democratas liberais, socialistas e democratas cristãos, entre outros
integrantes do que se poderia ver como polo “progressista” da sociedade.
Não penso que PT e PSDB possam
ser tratados pela dicotomia esquerda e direita. Um não está "mais à
esquerda" ou à direita do outro, a não ser em termos de agitação e propaganda
eleitoral. Os dois pertencem ao campo da socialdemocracia, portanto da “centro-esquerda”
ou da esquerda democrática.
O que vem a ser isso?
Comecemos pela esquerda: “amplo
e diversificado universo de homens e mulheres que defendem a democracia
política, o pluralismo e a justiça social como base para uma sociedade mais
igualitária, fraterna”. Trata-se, pois, de uma posição que pensa que o
capitalismo precisa ser politicamente regulado, a renda precisa ser mais bem
distribuída, a propriedade privada desconcentrada, as políticas sociais
incrementadas e o Estado, democratizado e impregnado de participação de massa,
e assim por diante.
Este universo, por ser plural,
comporta diferentes gradações e tipos. A esquerda democrática é um deles. Ela
seria a esquerda que não abre mão da democracia, não faz concessões neste
terreno, trata a democracia como valor universal e valoriza suas regras
procedimentais, seus valores e sua cultura. A revolução que esta esquerda
democrática concebe é reformista, não "revolucionária": é um movimento
progressivo de transformações estruturais. Precisamente por isso, ela é bem
mais flexível nas alianças e mais abrangente na cultura política, área na qual
admite, por exemplo, que os liberais democráticos têm um papel importante a
desempenhar na construção da igualdade social. Norberto Bobbio, por exemplo, foi
um deles. Alguns partidos integram esta corrente no Brasil: PSB, PSDB, PPS, PV,
Rede e parte do próprio PT.
A esta esquerda democrática
(que alguns preferem chamar de centro-esquerda, a meu ver equivocadamente), opõe-se
aquilo que, por contraste, poderia ser chamado de “esquerda não democrática”,
entendida não como posição "autoritária", mas como corrente que não
valoriza a democracia em termos de cultura e sistema de regras e procedimentos
e que acredita que a revolução deve ser feita "revolucionariamente",
mediante manifestações de força, lutas encarniçadas de classes e críticas
frontais ao capitalismo. Seria algo que, no Brasil, teria abrigo em partidos como
PSTU e PCO, em movimentos como o MST e em setores minoritários do PT. Haveria
também o PSol, que se apresenta como "esquerda coerente" mas que
ainda não deixou muito claro o que entende precisamente por isto.
Um traço comum a estas várias
expressões da esquerda revolucionária – que são, diga-se de passagem,
inteiramente dignas e legítimas –, é a convicção que cada uma delas tem de que seria
a única esquerda verdadeira e de que todas as demais seriam farsas pequeno-burguesas
ou expedientes de capitulação. Neste traço comum há, evidentemente, um
componente de arrogância e autossuficiência, que aparece quase sempre de forma
verborrágica e histriônica. Este componente, em vez de ajudar, atrapalha a
afirmação das esquerdas, pois funciona como usina de disseminação de uma
mentalidade, de uma cultura política, de um modo de expressão que opera em
favor da diferenciação radical, da separação e da oposição entre os democratas,
contribuindo para aumentar a fragmentação política e luta entre as esquerdas.
O PT tem uma história
socialdemocrática, mas se desencontrou dela nos últimos anos. Em vez de
fortalecer seus laços com a esquerda como um todo, preferiu se entregar ao
PMDB. Em vez de valorizar a cultura comum das esquerdas (democracia, reforma
social, tolerância, busca de direção intelectual, esforço para educar
politicamente a população, atitude republicana na condução do Estado), optou
por se dedicar à conservação do poder. Afastou-se assim da sociedade e da
esquerda, perdendo autenticidade. Talvez por isso a militância petista tenha
desaparecido, só voltando a ressurgir em períodos eleitorais.
O PSDB, hoje, mais por desejos
da Fortuna do que por virtù própria,
ressurgiu no bojo de uma aliança democrática que poderá dar a ele o norte
reformador que andou meio adormecido nos últimos anos. Esta aliança esboça hoje
a formação de um polo recomposto e alargado, no qual podem ser depositadas algumas
importantes fichas democrático-sociais. Se esta aliança crescer e se reforçar,
a trajetória da esquerda no Brasil tenderá a ser mais equilibrada e produtiva.
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