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Por Liberati |
Quando a gente acha que a boçalidade e a idiotice são privilégios
nacionais e marca registrada de alguns de nossos mais raivosos direitistas, eis
que chega a notícia de que, no Chile, em março passado, o deputado Felipe Ward
(UDI) distribuiu entre seus correligionários um documento intitulado “Gramsci
en Chile”, contendo capítulos selecionados de um livro do historiador Jaime
Massardo. A notícia está aqui: http://www.elmostrador.cl/pais/2014/04/22/udi-identifica-a-gramsci-como-el-verdadero-fantasma-a-temer/
Até aí, nada de mais. O problema é que o documento dissemina uma visão
no mínimo estapafúrdia, ainda que compreensível em se tratando do partido que abriga
o deputado. A Unión Demócrata Independiente (UDI) é um partido de direita,
fundado como movimento político em 1983. Suas origens ideológicas remontam ao movimento
gremial nascido na Universidade Católica em 1966, caracterizado por promover a independência
e a despolitização dos corpos intermediários da sociedade.
Segundo ele, existiria no Chile um governo perigosamente de esquerda,
que estaria, por meio de medidas de reforma tributária e educacional, tentar
impor no país um “comunismo 2.0”. Não satisfeito, acredita que a inspiração
para isto não vem de Marx, mas de Antonio Gramsci, que seria “o rosto sutil do
totalitarismo”. O marxista italiano forneceria recursos teóricos para que,
mediante as mencionadas políticas públicas, se pusesse em marcha “a versão
gradual de um Estado cada vez mais socialista, para cuja implantação é preciso primeiro
destruir o modelo y legitimar sua destruição”.
O suposto é que a teoria de Gramsci defende a “influência cultural” como
“arma da revolução” e, por isto, seria mais difícil de ser combatida. Seu
marxismo entraria nas mentes de forma subliminar e aos poucos tomaria todo o
corpo das pessoas, modelando sua alma e modo de pensar. Ele seria, portanto, o
verdadeiro adversário a ser temido e enfrentado.
O texto agrega que o pensamento de Gramsci está alimentado pelo “enfraquecimento
do matrimônio, pela legalização do aborto e pela permissividade frente à pornografia
e as drogas”. Por essa razão, a UDI se vê na obrigação de “alertar os chilenos”.
É pouco? Há um complemento esclarecedor: na era pós-industrial em que nos
encontramos, a “estratégia leninista da ditadura do proletariado tornou-se
obsoleta”. O marxismo se transfigura e adota enfoques mais dissimulados, como o
de Gramsci, que “preconizam apoderar-se das sociedades livres através da erosão
de suas instituições fundamentais e do domínio da cultura”, empregando para
isso “a destruição sistemática dos valores cristãos, especialmente os referidos
à família e aos costumes públicos e privados”.
Bobagem tentar argumentar contra esta visão tosca do pensamento de
Gramsci, autor que certamente jamais foi lido pelo deputado em questão e por
seus seguidores. Nem dá para levar a sério a imagem terrorista que ela tenta
construir mediante a ressignificação grosseira do marxismo e da ideia de
socialismo. Puro bestialógico.
O que dá para fazer é refletir sobre a situação a que chegamos. Estamos
às portas da civilização, num momento histórico em que a democracia está ao
alcance das mãos, em que as ciências e a filosofia fornecem muitos elementos para
o uso da razão, no privado e no espaço público. E, ao mesmo tempo, assistimos à
reprodução de fantasmagorias rudimentares, que empobrecem o debate democrático e
convidam os cidadãos ao retrocesso político, intelectual e cultural.
Tá certo, há a mola do interesse político, da luta pelo poder, por trás
de manifestações como as da UDI chilena. Mas nem tudo pode feito em nome
disto. Ou não deveria poder. Não custaria nada os caras capricharem um pouco mais.
No Chile e também por aqui.
E o pior é que eu já li considerações semelhantes feitas por articulistas brasileiros reacionários - nenhum deles com o brilho intelectual e a elegância de conservadores de boa cepa, como José Guilherme Merquior ou Oliveiros S. Ferreira. É lastimável a miséria do 'debate' intelectual contemporâneo.
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