quinta-feira, 8 de maio de 2014

O bestialógico anti-Gramsci


Por Liberati

Quando a gente acha que a boçalidade e a idiotice são privilégios nacionais e marca registrada de alguns de nossos mais raivosos direitistas, eis que chega a notícia de que, no Chile, em março passado, o deputado Felipe Ward (UDI) distribuiu entre seus correligionários um documento intitulado “Gramsci en Chile”, contendo capítulos selecionados de um livro do historiador Jaime Massardo. A notícia está aqui: http://www.elmostrador.cl/pais/2014/04/22/udi-identifica-a-gramsci-como-el-verdadero-fantasma-a-temer/
Até aí, nada de mais. O problema é que o documento dissemina uma visão no mínimo estapafúrdia, ainda que compreensível em se tratando do partido que abriga o deputado. A Unión Demócrata Independiente (UDI) é um partido de direita, fundado como movimento político em 1983. Suas origens ideológicas remontam ao movimento gremial nascido na Universidade Católica em 1966, caracterizado por promover a independência e a despolitização dos corpos intermediários da sociedade.
Segundo ele, existiria no Chile um governo perigosamente de esquerda, que estaria, por meio de medidas de reforma tributária e educacional, tentar impor no país um “comunismo 2.0”. Não satisfeito, acredita que a inspiração para isto não vem de Marx, mas de Antonio Gramsci, que seria “o rosto sutil do totalitarismo”. O marxista italiano forneceria recursos teóricos para que, mediante as mencionadas políticas públicas, se pusesse em marcha “a versão gradual de um Estado cada vez mais socialista, para cuja implantação é preciso primeiro destruir o modelo y legitimar sua destruição”.
O suposto é que a teoria de Gramsci defende a “influência cultural” como “arma da revolução” e, por isto, seria mais difícil de ser combatida. Seu marxismo entraria nas mentes de forma subliminar e aos poucos tomaria todo o corpo das pessoas, modelando sua alma e modo de pensar. Ele seria, portanto, o verdadeiro adversário a ser temido e enfrentado.
O texto agrega que o pensamento de Gramsci está alimentado pelo “enfraquecimento do matrimônio, pela legalização do aborto e pela permissividade frente à pornografia e as drogas”. Por essa razão, a UDI se vê na obrigação de “alertar os chilenos”.
É pouco? Há um complemento esclarecedor: na era pós-industrial em que nos encontramos, a “estratégia leninista da ditadura do proletariado tornou-se obsoleta”. O marxismo se transfigura e adota enfoques mais dissimulados, como o de Gramsci, que “preconizam apoderar-se das sociedades livres através da erosão de suas instituições fundamentais e do domínio da cultura”, empregando para isso “a destruição sistemática dos valores cristãos, especialmente os referidos à família e aos costumes públicos e privados”.
Bobagem tentar argumentar contra esta visão tosca do pensamento de Gramsci, autor que certamente jamais foi lido pelo deputado em questão e por seus seguidores. Nem dá para levar a sério a imagem terrorista que ela tenta construir mediante a ressignificação grosseira do marxismo e da ideia de socialismo. Puro bestialógico.
O que dá para fazer é refletir sobre a situação a que chegamos. Estamos às portas da civilização, num momento histórico em que a democracia está ao alcance das mãos, em que as ciências e a filosofia fornecem muitos elementos para o uso da razão, no privado e no espaço público. E, ao mesmo tempo, assistimos à reprodução de fantasmagorias rudimentares, que empobrecem o debate democrático e convidam os cidadãos ao retrocesso político, intelectual e cultural.
Tá certo, há a mola do interesse político, da luta pelo poder, por trás de manifestações como as da UDI chilena. Mas nem tudo pode feito em nome disto. Ou não deveria poder. Não custaria nada os caras capricharem um pouco mais. No Chile e também por aqui.

Um comentário:

Cláudio Camargo disse...

E o pior é que eu já li considerações semelhantes feitas por articulistas brasileiros reacionários - nenhum deles com o brilho intelectual e a elegância de conservadores de boa cepa, como José Guilherme Merquior ou Oliveiros S. Ferreira. É lastimável a miséria do 'debate' intelectual contemporâneo.