terça-feira, 6 de maio de 2014

O inimigo onipresente




A Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Unesp e a Editora Unesp tornam disponíveis nesta semana mais 57 títulos do selo Cultura Acadêmica para download gratuito. As obras integram a Coleção Propg/FEU Digital, que passa a contabilizar 249 títulos. Os e.books poderão ser baixados em formato PDF ou Epub pelo endereço http://bit.ly/ipKHX8.
A coleção, iniciada em 2010, objetiva democratizar a produção acadêmica da UNESP e aborda temas variados da área de Ciências Humanas. Os livros estão disponíveis também para impressão sob demanda.
Tive o prazer de prefaciar um dos novos e.books. Trata-se de A construção do inimigo nos discursos presidenciais norte-americanos do pós-Guerra Fria, de Lucas Amaral Batista Leite, resultado da dissertação de mestrado que orientei e que foi defendida em 2013 no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais UNESP/ Unicamp/PUC-SP.
Lucas é atualmente doutorando no Programa de Pós e professor de Relações Internacionais na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Seu trabalho examina a construção do inimigo nas narrativas dos State of Union Adresses, discursos anuais proferidos pelos presidentes norte-americanos sobre política externa, defesa e economia, comuns desde os primeiros mandatos estabelecidos naquele país. Foram analisadas as falas de George H. W. Bush (1989-1993); Bill Clinton (1993-2001) e George W. Bush (2001-2009).
Abaixo, o prefácio que redigi para o livro.
O livro que o leitor tem em mãos, resultado de uma pesquisa de mestrado que tive a satisfação de orientar, representa um tour de force não usual nos estudos de relações internacionais. Ainda que não seja exemplo de investigação que fuja das correntes e ênfases dominantes nessa área de conhecimento, segue um caminho próprio, esgrimindo e dialogando com um objeto complexo, nem sempre devidamente valorizado e cujo tratamento sistemático exige a confluência de várias disciplinas mais ou menos especializadas – exige, por assim dizer, uma perspectiva totalizante e histórico-sistemática que valoriza e distingue a investigação.
Lucas Leite propôs-se a analisar o discurso político norte-americano tendo como eixo a dicotomia amigo/inimigo, um dos grandes topos dos estudos sobre o poder político, o Estado e as relações internacionais. O tema, por si só, desafia por sua complexidade teórica e por sua concentração temática: afinal, ele privilegia a política e as características culturais que tingem de particularidade o discurso político nos Estados Unidos, potência que para ser investigada requer um pensamento astuto, ágil, refratário a maniqueísmos e simplificações.
Ciente de que teria de lidar com um grande problema de pesquisa, Lucas procurou recortá-lo com inteligência, de modo a torná-lo passível de tratamento operacional. Antes de tudo, circunscreveu o trabalho à análise dos discursos presidenciais conhecidos como “o estado da União” (State of the Union Adresses), pronunciamentos feitos no início de cada ano, em que o presidente aborda os temas que centralizam a atenção de seu governo e da opinião pública nacional e internacional – discursos, portanto, que ocupam lugar estratégico na explicitação das escolhas e ênfases políticas norte-americanas. São pronunciamentos, também, revestidos de grande valor simbólico, que se repetem de forma quase ritual desde praticamente as origens da república estadunidense.
Além disso, Lucas Leite limitou sua análise a um período específico (1989-2009), dotado de grande singularidade, aquele que se segue ao fim da Guerra Fria e da bipolaridade no cenário internacional. Foram assim destacados discursos diretamente relacionados a conflitos que se mostraram particularmente emblemáticos durante as administrações de George H. W. Bush (1989-1993), Bill Clinton (1993-2001) e George W. Bush (2001-2009). O recorte privilegiou os períodos inteiros desses governos, seja para facilitar o alcance de uma visão mais articulada, seja para garantir um mínimo de afastamento temporal, procedimento recomendável quando se analisam fatos políticos. Com isso, a pesquisa pode se debruçar sobre a dialética das mudanças e continuidades que tipificam a política norte-americana em distintos momentos: a quebra da ordem bipolar causada pela dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria, a atuação norte-americana no que se chama de “momento unipolar” e a guinada conservadora com a “Guerra ao Terror” no governo W. Bush.
Lucas Leite também procurou se cercar de cautelas metodológicas. Buscou, como referencial teórico, autores filiados ao que se costuma designar como “pós-estruturalismo” em Relações Internacionais, corrente que atribui grande valor teórico e cognitivo à linguagem e às práticas discursivas para o estabelecimento de identidades e a construção das alteridades, das imagens do “outro”.
Como o leitor poderá constatar, o resultado foi substantivo. A pesquisa, que não procurou analisar as diferenças políticas entre democratas e republicanos, constatou que o discurso presidencial norte-americano segue um padrão consolidado de narrativa, ainda que os presidentes façam suas próprias inflexões, em sintonia com as tradições partidárias e as circunstâncias históricas concretas. Os discursos ajudam, assim, a que se estabeleçam parâmetros para a compreensão das identidades particulares e da cultura nacional norte-americana.
Ao fixar o fim da Guerra Fria como marco da reconstrução pretendida, a pesquisa também contribui para que se veja o mundo em ritmo de transformação e reorganização, em um quadro no qual se plasmava uma nova realidade internacional e se recompunha o papel dos Estados Unidos. Não à toa, todos os presidentes do período expressaram a ideia de que seus governos eram “excepcionais” porque o momento histórico assim o exigia, buscando reiterar a ideia-mestra de que o futuro da humanidade estaria diretamente ligado à atuação dos Estados Unidos. Ainda que o cenário internacional estivesse mais complexo e fragmentado, com modificações importantes no peso relativo das potências e subpotências e com a emergência de novos protagonistas, o discurso norte-americano insistirá no caráter universal dos valores sedimentados ao longo da construção histórica dos Estados Unidos. Tratou-se sempre de insistir na concepção de que a América se distinguia como uma nação destinada à grandeza, uma espécie de “povo escolhido” obrigado a dirigir os demais.
Os atentados terroristas em 11 de Setembro de 2001 representaram evidentemente um corte, um ponto de inflexão. Possibilitaram que o discurso se radicalizasse e impulsionasse a radicalização da conduta externa do país. As narrativas deixarão de permanecer na constatação do caos crescente do mundo, avançando para o terreno mais demiúrgico da “barbárie” a ser enfrentada em nome da “civilização” ameaçada. O inimigo será ressignificado e devidamente demonizado: combater o terrorismo não será mais uma operação dedicada à busca de ordem e paz, mas sim à eliminação de uma “maldade” que ameaçava povos e indivíduos, a começar dos norte-americanos.
Explorando com habilidade e rigor a lógica inerente aos discursos presidenciais, Lucas Leite contribui para que os Estados Unidos sejam vistos segundo a visão dos próprios norte-americanos, que se sustenta sobre uma longa tradição histórico-cultural e sobre uma sedimentada, mas diversificada, imagem do inimigo, que está fora e dentro, que pode ser o amigo de ontem ou o sorrateiro companheiro de viagem, o aliado ou o adversário contumaz, em suma, uma figura de múltiplas faces e características. Um “outro” que sempre se repõe.
Marco Aurélio Nogueira, São Paulo, dezembro de 2013.

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