Um clima de crise política ronda
Brasília. Bastou o governo Dilma Rousseff deslocar algumas peças no tabuleiro
para que a temperatura subisse e a base parlamentar que apoia o Palácio do
Planalto mostrasse sua fragilidade.
Não se trata de crise aguda ou que afete
o sistema nervoso central do governo. Há mais mal-estar do que crise
propriamente dita. Um mal-estar sem data para desaparecer, pois não há, no
horizonte de curto e médio prazo, nada que se possa fazer para gerar distensão.
Tem perfil sistemático, associando-se intimamente ao modo como vem sendo organizadas
as atividades governamentais e a política no país. É puramente político porque
não necessita da interferência de nenhum outro fator para se manifestar. Afinal,
não há desarranjo econômico, ameaça inflacionária ou aumento do desemprego, o
governo governa, os movimentos sociais não estão na ofensiva. Os grandes temas
da agenda – a Lei Geral da Copa e o Código Florestal, por exemplo – exigem
coordenação adicional do governo, mas não são daqueles que dividem a sociedade.
A turbulência é política, mas não se deve
às oposições, que desapareceram do cenário, engolidas por seus próprios dilemas.
Eclode, evolui e se mantém porque a política chegou a um nível tão baixo, tão
ruim, que passou a liberar somente gases tóxicos e venenos. O ar ruim e as
toxinas incomodam e debilitam a sociedade mas não geram revolta social.
Contaminam antes de tudo o próprio sistema político e seus integrantes,
empurrando-os escada abaixo.
O sistema fechou-se em si, como numa
redoma. Alimenta-se de seus próprios produtos e respira um ar que circula
represado, sem contato com o exterior. Funciona como se não existisse vida fora
dele. Os interesses políticos tornaram-se interesses dos políticos, de suas
agendas e organizações. E como o governo
é parte do sistema, é-lhe difícil conseguir se libertar desse abraço de urso,
pagando um preço por isso.
O mal-estar cresceu porque em março
entraram em cena, de modo forte, três fatores decisivos.
Primeiro, o governo Dilma resolveu
aprofundar sua intenção de ser mais "técnico" que
"político" e decidiu testar em que medida o Congresso o acompanhará
nisso. Trocou ministros, mexeu nas lideranças da Câmara e do Senado, cutucou
amigos e aliados, endureceu nas conversas e negociações. Fez isso porque
precisa deixar o governo com a cara e o estilo da Presidente.
Segundo: governo federal, no Brasil, é
sinônimo de muita gente. Há quadros para tudo, assessores de todo tipo, lugares
para abrigar quem se dispuser a cerrar fileiras e ajudar, mil e um mecanismos
de atração. Mas nem sempre o governo tem bons articuladores, com trânsito e
reconhecimento no Congresso e na sociedade. Não se trata de ter pessoas
ilibadas e bem-preparadas, mas sim de lideranças que consigam dar nó em pingo
d’água, que tenham o perfil do “estadista” e não do dirigente partidário ou da
autoridade governamental. Sem essas figuras, que são poucas e raras, as
negociações ficam soltas no ar, derrapam a qualquer brisa. Para operar em
situações mais tensas, por exemplo quando se pretende endurecer o jogo,
estadistas são vitais. Em que pese as responsáveis pela articulação
governamental (ministras Ideli Salvatti e Gleisi Hoffmann) já terem dado provas
de competência e lealdade, elas parecem atuar sozinhas ou com reduzido suporte.
Não têm sequer o próprio PT trabalhando a favor. E são espicaçadas pela decisão
presidencial de fazer com que o gerencialismo prevaleça nas decisões do
governo.
O terceiro fator está no sistema
partidário, com seus humores sazonais, seus apetites desmesurados e sua baixa
qualidade. Já excitados com as eleições
municipais que se aproximam, os partidos ingressaram naquela fase em que nada pode
ser desperdiçado. Precisam "mostrar serviço" para seus eleitores,
engrossar e elevar a voz, provar que estão vivos. Antes de tudo, não podem
abrir mão dos recursos de poder que controlam, pois não sabem fazer política
sem eles. É hora de tentar demonstrar força e de aparecer como indispensáveis.
Como se movem segundo uma racionalidade de avestruz, trombam o tempo todo.
Quando ameaçados de perder certos privilégios, debandam e saem em busca de um novo
porto onde possam atracar e recomeçar. No caso concreto, mesmo que a fuga tenha
sido baixa, limitando-se às bordas da coalizão predominante, algum desconforto
ela causou, fato que poderá levar o governo a moderar sua reorientação.
Em suma, nada do que se passou em
Brasílias nas primeiras semanas de março tem nitroglicerina para derrubar ou
inviabilizar o governo, mas o desafia. São coisas políticas, da política e dos
políticos. Aprofundando-se num momento em que a representação está posta em
xeque, e também por causa disso, o mal-estar só faz aumentar aquela sensação de
“naufrágio” apontada por Fernando Gabeira dias atrás nessa mesma página. “A
política fechou-se nela mesma, despojou-se de suas características históricas e
virou uma corporação que cuida dos próprios interesses”. Difícil imaginar como
será resolvido o problema.
Vivemos um tempo de democracia, em que
não há autoritarismo, nem violência política, em que direitos prevalecem e
rotinas legais são cumpridas. Tudo isso parece sólido, mas funciona sem gerar
muita satisfação e seguramente sem empolgar. O quadro é de caos estabilizado,
sofrimento sem dor. Vida que segue.
A política vai mal quando não tem
serventia para os cidadãos, não se comunica mais com sociedade e vira coisa de
políticos para políticos. É assim que estamos hoje. Ela, porém, não desapareceu
nem corre o risco de desaparecer. Temos de sair da política para que se possa
voltar a ter política. Ir onde o povo está. Usar a imaginação. Mudar o modo de
fazer, pensar e organizar a política. Amplificar o que anda rolando nas redes e
na sociedade civil, por exemplo.
Se algo for ser feito nessa direção,
mal-estares como o de março em Brasília terminarão reduzidos à sua justa
dimensão: mera nuvem passageira. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 24/03/2012, p. A2].
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