sábado, 24 de maio de 2008

Partidos e homens partidos


Ilustração de Liberati. Grazie!

Não vivemos somente um “tempo de partido, tempo de homens partidos”, como diz a poesia de Drummond. O nosso também é um tempo de partidos partidos.

Os partidos políticos sempre se caracterizam pela divisão interna. Mesmo quando monoliticamente constituídos, são associações plurais, cortadas por distinções muitas vezes marcantes. Por existirem em função da conquista e da manutenção do poder, tudo neles adquire grande dose de tensão, virulência e dramaticidade. Como são compostos por diferentes grupos e pessoas, podem ser guiados mais por interesses e projetos particulares que por orientações coletivas. Isso é verdade especialmente se estas últimas derivarem de ordens e comandos estabelecidos de modo unilateral pelas direções centrais, que sempre poderão ser acusadas de não terem a devida sensibilidade para fatos e acontecimentos mais próximos das bases. Além do mais, os dirigentes de um partido podem se converter, eles mesmos, em uma parte dentre outras, transformando-se em uma oligarquia que termina por atazanar e desfibrar bases e militantes.

Tanto são divididos os partidos que boa parte de sua rotina é dedicada a compor consensos e unificar interesses. Não é por acaso que muito da discussão repouse na questão do modelo de deliberação a ser seguido. Há duas grandes formas de centralismo (ou seja, de coordenação e unificação) – o burocrático e o democrático – que refletem, tipicamente, processos de tomada de decisão em que o poder é imposto a partir de cima ou é construído a partir de baixo. Quando levado a sério e efetivamente praticado, o procedimento democrático é o único que consegue fazer com que as lutas internas em um partido terminem sem sangue, expulsões e dissidências. Tal procedimento, no entanto, exige que a dinâmica interna e a conduta pública do partido estejam impregnadas de idéias e princípios profundos, e só pode frutificar se o partido for ele próprio “aberto” para o mundo plural da sociedade.

Os embates partidários de hoje estão longe deste padrão. Primeiro, porque neles há poucas idéias e poucos parâmetros programáticos. Depois, porque as direções não têm peso e representatividade para conduzir o barco. Entre as alas dos partidos, inexistem divergências de fundo. Briga-se por migalhas, por postulações pessoais, por pretensões eleitorais. Na melhor hipótese, as disputas sugerem a existência de algum desentendimento doutrinário ou estratégico mas não são assumidas como tais.

Os casos que ocupam o noticiário brasileiro – o do PT em Minas, o do PSDB em São Paulo –, são emblemáticos desta situação. Alckmin quer ser candidato simplesmente por se julgar qualificado para o cargo, não por possuir proposta específica ou divergir em termos substantivos do que pensam os dirigentes de seu partido. Sequer questiona a aliança com os liberais do DEM, a ponto de iniciar sua campanha abraçado ao PTB e ao PSDC, que têm bem menos densidade e expressão. Faz isso por falta de opção e porque tem os olhos na propaganda eleitoral gratuita. Age por dinâmica própria, pouco se importando com a agenda futura do partido ou com o fato de seus companheiros vereadores pensarem de outro modo.

No caso do PT em Minas, as divergências são sérias. Tocam num ponto delicado da história do partido, o das alianças. Deve o PT privilegiar mais seus próprios interesses ou mais os interesses da sociedade? Deve governar compondo alianças que beneficiem a população e facilitem a implementação das melhores políticas ou fazê-lo com os olhos nas disputas eleitorais? Os adversários em um âmbito da federação devem sê-lo também em outro? Não são questões retóricas ou de detalhe, e diante delas não há como tergiversar, ou dizer que se deseja o melhor dos dois mundos.

Hoje está evidente que PT e PSDB não têm uma compreensão clara do papel que devem desempenhar, da estratégia a seguir, da contribuição que imaginam dar para a continuidade e o aprofundamento da democratização ou a eliminação da desigualdade social no Brasil. Como não há clareza teórica e programática nos partidos, como eles, a rigor, não sabem bem o que propor à sociedade e não possuem maior densidade cultural, as divergências fogem para os bastidores, ou seja, para as questões regionais, pessoais, grupais, que se tornam mais relevantes que as outras.

A situação desgasta os partidos no nível macro e no longo prazo, mas acaba por beneficiar suas correntes e lideranças de maior destaque, que exploram justamente as rusgas localizadas para ganhar terreno na luta interna, manejando desejos, vaidades e postulações. É bem verdade que neste universo, aparentemente louco e paradoxal, ninguém rasga dinheiro e as chances de unificação jamais desaparecem. Ainda quando divididos, raramente os partidos cometem suicídio. Chegam mesmo a alcançar alguma unidade de ação quando se trata de aumentar a força de seus candidatos.

O problema não é, portanto, de viabilidade eleitoral ou sobrevivência fisiológica, mas de razão de existir. Nosso tempo é certamente de homens partidos, mas talvez não seja mais um tempo de partido. É difícil tomar partido hoje em dia, ainda que seja fácil se indignar. E há algo na estrutura da vida atual que rouba condições de possibilidade aos partidos políticos. Eles vagam meio sem rumo, como mortos-vivos, no cenário contemporâneo.

Consequentemente, aqueles que se dedicam a mantê-los em funcionamento deveriam se preocupar em lhes dar oxigênio de melhor qualidade. Deveriam provê-los de idéias claras, identidades e estratégicas consistentes, paixão cívica e visão que ultrapasse a dimensão do poder. Coisas que estão uma camada acima do chão operacional e rotineiro da política. Este chão, no entanto, é onipresente, e tende a magnetizar tudo. (Publicado em O Estado de S. Paulo, 24 de maio de 2008, p. A2).

4 comentários:

Sizenando disse...

“ O problema não é, portanto, de viabilidade eleitoral ou sobrevivência fisiológica, mas de razão de existir. Nosso tempo é certamente de homens partidos, mas talvez não seja mais um tempo de partido. É difícil tomar partido hoje em dia, ainda que seja fácil se indignar. E há algo na estrutura da vida atual que rouba condições de possibilidade aos partidos políticos. Eles vagam meio sem rumo, como mortos-vivos, no cenário contemporâneo. ”
Marco, você falou em paixão cívica em seu texto, que é o que cutuca um indivíduo a entrar em embates políticos, associar-se a grupos ou partidos, e participar consciente e ativamente da vida social. Mas há coisas que conseguem esvaziar essa tal paixão: a luta pela sobrevivência, por exemplo, que aliena o indivíduo, desestimula sua visão mais ampla, sua relação com o coletivo e que, amiudando sua personalidade, afoga-o no individualismo, na visão concentrada do dia a dia e nas coisas do curto prazo – o que, fechando o círculo, dificulta mais e mais sua luta pela sobrevivência.

Lembro de uma reunião, ainda ilegal, do comitê municipal do pcb - hoje pps. eu continuo achando ruim a mudança do nome - pelos dias de agora, seria chamado de mau marketing, mas este não é o assunto.
Na tal reunião, aqui em São Paulo, discutia-se a reorganização da direção no Estado de SP, os ânimos acirrados, a idéia de democracia interna estava em discussão entre outros temas. eu representava uma base de bairro (ou célula? não lembro) morava então na região do Cambuci, eu era o "secretário político". fiz uma proposta de nomes - a serem votados, claro - uma proposta de chapa para dirigir o Partido no âmbito municipal, tendo em vista a futura reorganização nacional do Partido. ok.
Sim, apresentei meu nome, aliás, codinome a despeito da maioria do pessoal presente saber meu nome (rs) compondo uma lista estilo "panos quentes". explico: eu apresentei uma espécie de colcha de retalhos com elementos que representavam, digamos, a idéia de "democracia radical" e nomes vinculados ao que seria "tradicional" dentro do PCB.
Quase todos os nomes que apresentei foram aprovados e, entre os excluídos, lá estava eu. eu mesmo, autor da proposta "conciliadora" de grupos que, a meu ver na época, não eram assim tão divergentes – mas, sim, eram divergentes.
Terminada a conferência, desculpo-me por não lembrar a data exata, meados dos 80, peguei carona com antigo conhecido pra volta ao lar. no trajeto ele explicou que não votou em mim (e eu não havia perguntado nada) porque alguém “da direção” informou que “o companheiro tem pouco tempo de partido, só três meses”. O mais educadamente possível expliquei que na verdade eu já estava no Partido coisa de três anos. Terminamos o restante do percurso em silêncio.

Não, não espero que um partido político funcione como um divã psicanalítico. Mas se um partido político não presta atenção em seus militantes (sim, é possível um partido político ligar-se a “questões singulares”, através, claro, de suas instâncias “intermediárias”) será que, de fato, esse partido é capaz de enxergar com a máxima clareza possível a sociedade que ele pretende servir e organizar?

Acho que a historinha vale ainda pros dias de hoje. Os partidos políticos não sabem o que fazer com suas histórias – talvez a história não sirva pra nada, não sei – e como lidar com os problemas que vem deixando de lado, sistematicamente, em nome de alianças, de conjunturas e de outros quetais de médio e curto prazos.

Faz tempo que vivemos tempos de homens partidos. Mas não estou certo de que nosso tempo não seja de partidos.

Blog do Marco Aurélio Nogueira disse...

Caro Sizenando:
agradeço muito o comentário, que é uma excelente ilustração para o artigo. Vc foi na veia, agregando ao discurso abstrato uma dose fascinante de vida prática. Vemos coisas assim acontecerem no dia-a-dia, desde sempre, mas com furor incontido nos dias atuais, em que os partidos perderam parte de sua aura substantiva e se entregaram sem culpa aos jogos de poder. Foi essa a idéia do artigo. Refletir sobre esta entrega, o custo que ela tem.
Acho que assino embaixo da tua última frase: "não estou certo de que nosso tempo não seja de partidos". Mas sob uma condição: nosso tempo é de partidos partidos e sem vertebração programática. São partidos voltados para o poder, e mais nada.
Será isso?

Sizenando disse...

Sim, é isso. Hoje ponto programático é confundido com anotação de idéia durante "brainstorm" de agência de propaganda que acabou de ganhar uma "conta" de ong poderosa.
Vivemos um período de profusão de ongs onde está estabelecido que partidos (isto é, organização sob uma determinada referência ideológica)é coisa do passado. Não estou inventado, isso está documentado nesse filme publicitário de aparelho de barbear com grandes jogadores de futebol que tá rodando na tv. Nele aparece nosso orgulho nacional, o Kaká, dizendo que não pensa no passado, o passado é história, e que só pensa no "dia de hoje".
estamos todos partidos em vários sentidos. Estou convencido de que idealizo o papel do conhecimento histórico, fico perplexo diante do cenário político partidário em que todos os partidos me parecem estar se comportando da mesma maneira. Sim, são partidos "sem vertebração programática. São partidos voltados para o poder, e mais nada."
A única coisa que me ocorre, diferentemente do sr. Kakà (um jovem que provavelmente nem sabe o que diz, só diz conforme mandam), é que não tenho nenhuma vontade de entrar pro Greenpeace.

Blog do Marco Aurélio Nogueira disse...

A questão, Sizenando, é descobrir como fazer para que as coisas aconteçam. Não sei se os partidos são "coisas do passado", mas sei que no passado eles cumpriram uma função. Agora, talvez estejam sem eixo,ou talvez o modo de vida não os sustente mais. As coisas, no entanto, continuam a acontecer, e teremos de descobrir o melhor modo de dar direção a elas. Concordo com vc que não será via ONGs, ou exclusivamente via elas. Elas podem ajudar ou atrapalhar, depende. É um questão em aberto, um desafio.