Os que viveram ou estudaram o
fato hão de se lembrar. Quando Tancredo Neves, poucas horas antes de tomar
posse como primeiro Presidente civil após o ciclo ditatorial, em março de 1985,
deu entrada no hospital para dele sair morto 30 dias depois, o cenário político
se turvou. O que aconteceria, naquele país habituado a golpes e expedientes
autoritários? A ampla articulação política empreendida por Tancredo, costurando
apoios complexos e minando resistências, parecia estar em jogo, e com ele a
própria transição democrática. Nos primeiros dias, nem sequer se sabia se José
Sarney poderia ou deveria substitui-lo, até porque se tratava de um vice com
função acessória, destinado a facilitar a aliança com os dissidentes da
ditadura.
Aos poucos, a situação se
esclareceu e a crise foi debelada. A Virtù
dos políticos soube enfrentar e vencer a armadilha da Fortuna. Naqueles dias, decidiu-se a sorte de um país que lutava
para chegar à democracia. Tancredo, Ulysses Guimarães e o PMDB estavam, sem o
saber, escrevendo a História.
Eduardo Campos não era Tancredo
Neves e não estava, antes de sua trágica morte, a desempenhar o mesmo papel
épico do político mineiro. Arava chão mais localizado, ainda que importante.
Tancredo construía uma saída para um impasse que rebaixava toda uma sociedade.
Eduardo agia em um cenário desprovido de impasses e sem a dramaticidade dos
idos de 1984. Buscava protagonizar disputas presentes e futuras: desdobrava-se para
que se chegasse a uma situação política polarizada de outro modo, sem a rotina
vazia da contraposição PT x PSDB, que inflama o país há duas décadas mas não
possibilita avanços mais rápidos e contundentes.
Se Tancredo frequentava a
História, Eduardo Campos estava todo na política.
Sua morte prematura, porém,
converteu a disputa presidencial num drama e num recomeço. Deslocou forças e
expectativas, lançando incógnitas para o processo eleitoral. Que será feito de
seu “capital político”, que tinha tudo para encorpar? Que acontecerá com sua coligação,
que reúne partidos pequenos, empresários modernos, ambientalistas e
descontentes com os rumos da política no país? Conseguirá Marina Silva
desempenhar o mesmo papel catalisador e traduzir, em linguagem política, o
projeto original, tornando-o vencedor?
Eduardo Campo era um
articulador político competente, função que escasseia hoje. Conversava e falava
bem, tinha domínio técnico dos assuntos, era simpático e sabia dosar projeto
pessoal, interesses partidários, vida familiar e interesse público. Tinha suas
falhas e limitações, é evidente. Mas não ia com sede excessiva ao pote.
Preparava-se para 2018, compondo aliados para atuar como um desbravador de
novas possibilidades políticas, administrando conflitos e diferenças. Forjou
assim sua identidade. Marina tem outra trajetória e outro estilo, mas conviveu
com ele e com ele misturou águas e ideias.
O projeto a que se dedicou era
maior do que ele, precisamente porque respondia a uma exigência da realidade. Teria
de ser encarnado e cedo ou tarde surgiria um personagem disposto a romper com o
“script desgastado e sem vida” (Luiz Werneck Vianna) que vem organizando a
disputa política no país há duas décadas. Os blocos de forças que têm dado
sustentação ao PT e ao PSDB ficaram porosos demais, não podem fornecer base
para avanços rápidos e consistentes.
Esta condição objetiva repele a
santificação de Eduardo Campos. Sua
morte não estava prevista nem poderia ter sido controlada. Superpôs-se a planos
e cálculos. Um desígnio da Fortuna. Seus
desdobramentos e efeitos, sua eventual positividade, não cairão do céu. Para
que colem na vida prática, terão de contar com a Virtù dos que abraçarem o próprio projeto.
Virtù
significa muitas coisas, mas neste caso se confunde, sobretudo, com valorização
da unidade política, eliminação de personalismos e construção de consensos. Trata-se
da formação de um novo bloco de forças sociais. Exige disposição e sacrifício,
boa dose de pragmatismo e uma pitada de fantasia. Pode encontrar personificação
tanto no PSB quanto em Marina Silva, tanto nos socialistas quanto nos
“sonháticos”, pois depende essencialmente de boa vontade e ponderação.
Marina tem uma boa base de onde
arrancar, os votos obtidos em 2010. Sua biografia fascina. Sabe se posicionar.
Tem pontes sólidas com setores importantes da população e muitas possibilidades
de interagir com outros. Há os indecisos e os predispostos a anular o voto, que
podem mudar de posição. Há os evangélicos que, por fidelidade religiosa,
poderão apoiá-la. Há os que vêm nela – como faziam com Eduardo – uma
alternativa à polarização PT x PSDB. E há os marinistas de primeira viagem, que
a entendem como uma opção antissistêmica e de renovação política pela via do
ambientalismo.
Neste universo, estão tanto os
seguidores mais dogmáticos, a quem não incomoda o tom por vezes messiânico de
Marina, quanto os que se sentem abandonados pelos partidos e querem algo
diferente. Ou seja, os jovens, boa parte dos quais amadureceu nas ruas de junho
de 2013. São eles que podem fornecer a Marina o principal combustível de
campanha, potencializando o que ela já tem e o que lhe será concedido pela
máquina do PSB, se essa a acompanhar com dedicação.
Como Marina e o PSB
administrarão esse compósito de forças, interesses e expectativas é algo a ser
visto nas próximas semanas. A política é sempre uma sucessão de teoremas, que
somente podem ser demonstrados mediante o discernimento e o empenho dos protagonistas.
Chances consistentes de
consolidação e crescimento de seu nome existem. Estão aí, soltas, prontas para
serem processadas. Para isso, a campanha de Marina terá de se unificar e de esclarecer
o que há de substantivo e factível em seu programa de governo, seja no que diz
respeito ao desenvolvimento sustentável, seja no plano dos direitos e das
políticas de igualdade e bem-estar. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/08/2014, p. A2]
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