Para Luiz Werneck Vianna, cujasanálises sempre iluminamDe junho de 2013 a junho de 2014, cristalizou-se no Brasil a convicção de que manifestações por direitos, políticas e salários são uma das condições da vida democrática. Passou-se um ano, chegamos à Copa, o processo eleitoral se configurou com maior clareza e os manifestantes não saíram das ruas.Já não exibem a mesma vitalidade de antes, o mesmo magnetismo surpreendente e cheio de promessas que levou, de um jato, milhões de pessoas às ruas em junho de 2013. Também seus protagonistas mudaram, ou se ampliaram. Não são mais, tipicamente, jovens das camadas médias, desejosos de ver atendidas suas postulações por melhores políticas e por governos mais atentos ao que ocorre nas grandes cidades, aos transportes, à mobilidade, à segurança e às possibilidades de usufruto pleno da vida urbana. Aqueles manifestantes, que permanecem ainda que em menor número, fixaram uma pauta e permitiram, entre outras coisas, que se tomasse consciência do custo da democracia e do despreparo das forças policiais. Como se sabe, parte do combustível que levou as massas às ruas em junho de 2013 veio do repúdio ao modo como a polícia manejou e reprimiu as manifestações.Por terem tido caráter explosivo e espasmódico, por sua natureza “horizontal” e refratária à política institucionalizada, as ruas de junho refluíram. Não conseguiram manter o pique. Passaram para um estado mais latente, uma espécie de stand by no qual os fatores que as movimentaram hibernam, sem perder potência e sem serem devidamente processados. Neste refluxo, produziram dois efeitos.Por um lado, deixaram evidente o despreparo do mundo político e dos governos para dialogar com a pauta posta em 2013. Pouco foi feito para inseri-la nas políticas praticadas. Sequer o discurso governamental foi expressivamente reciclado. Os partidos permanecem surdos e mudos. Uma ou outra iniciativa reflete algum esforço para incorporar os novos termos do jogo político e social, caso, por exemplo, das reuniões promovidas pelo PT com blogueiros e ativistas das redes sociais.Pode-se dizer o mesmo da decisão do governo federal de incrementar sua política de “participação social” com a criação de um novo conselho destinado a fornecer mais voz às entidades da sociedade civil. Participação é sempre bom, mas sua força somente pode vir da luta. É uma conquista, não uma concessão. A sociedade civil integra o Estado e deve buscar invadi-lo sempre, mas não é subalterna a governos e não deveria seguir seus comandos, suas agendas ou seus interesses, por mais progressistas que possam ser. Quando assim faz, é cooptada e deixa de ser sociedade civil, convertendo-se em “terceiro setor”: algo estéril, destinado muito mais a prestar serviços do que a encaminhar contestações e novas agendas ou a exercer e ampliar controles sociais.Seja como for, tudo isso é muito pouco: são iniciativas cortadas pelo interesse eleitoral e pela busca de hegemonia. Fazem parte do jogo político, mas é preciso que se reconheça bem o terreno em que estão postas.Por outro lado, o refluxo trouxe consigo uma espécie de substituição: os jovens das camadas médias, com suas ações “horizontais” e suas pautas múltiplas, cederam o espaço a setores mais organizados, com suas pautas simplificadas e suas ações “verticais”, ou seja, coordenadas por entidades à moda antiga, com chefes, bureaux políticos, comandos e ferramentas de ativação. Voltaram à cena os sindicatos, as greves, as lutas por salários e por demandas materiais específicas (moradias, por exemplo).Como escreveu Luiz Werneck Vianna, com a costumeira argúcia, “desde junho de 2013 as ruas não têm dado tréguas em suas manifestações, primeiramente sob as bandeiras dos direitos, como os de acesso à saúde, à educação e à mobilidade urbana, e, nesta segunda onda dos dias presentes, com o claro registro da dimensão dos interesses. Em poucos meses, mudaram os temas e os personagens. As camadas médias, antes com massiva participação, cederam lugar a categorias de trabalhadores demandantes de melhorias salariais, por vezes à margem da orientação dos seus sindicatos, e a movimentos sociais de extração social difusa, como os do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), boa parte deles sob a influência de partidos da esquerda radicalizada”. [, Estadão, 22/06/2014, p. A2]. A troca dos direitos pelos interesses não foi, claro, radical nem completa. As duas dimensões continuam a interagir. Mas a inflexão foi importante e representou uma mudança de qualidade. Se velhos e novos personagens vierem a caminhar de modo mais articulado, a contestação será potencializada. Não é esse, porém, o cenário provável, ao menos no curto prazo. Por enquanto, o único elo que entre eles se estabeleceu teve a ver com o idêntico reconhecimento de que o fator que os impulsiona é um gigantesco mal-estar social – ora expresso na má qualidade de vida, ora no medo da inflação – e a recusa da política. Nos termos de Werneck Vianna, ambos os atores “guardam em comum o mesmo viés economicista e a mesma distância quanto à política”.A explosão de junho de 2013 não caiu do céu. Surpreendeu pela força, mas estava em preparação desde bem antes. Há mais de uma década o país vinha se contorcendo, como se estivesse a sentir as dores de um crescimento. O lento crescimento econômico não impediu que se processasse um importante processo de inclusão social, turbinado por políticas governamentais que jogaram para cima alguns milhões de brasileiros que estavam estacionados na linha da pobreza e geraram uma forte mobilidade social. A sociedade se recompôs. Mas fez isso de maneira típica: o deslocamento para cima foi impulsionado pelo consumo, não tanto por direitos. A cidadania se dilatou pela via do consumo, fazendo com que entrassem no circuito milhões de indivíduos soltos demandando melhores serviços públicos e maior poder de consumo.A mola disso tudo foi, portanto, economicista: a mola do interesse e da defesa das posições conseguidas.O processo, além do mais, não foi acompanhado de nenhum projeto de sociedade. Os mais ricos – as “elites” das velhas classes médias – reagiram como se estivessem a ser ameaçados por “emergentes” interessados em ocupar lugares e espaços antes tidos como invioláveis (shoppings, aeroportos, bairros). A reação foi regra geral de desconforto e mal-estar, mas algumas vezes se fez acompanhar de agressividade e histeria, desvelando traços de uma mentalidade senhorial e estamental ainda presente na sociedade.Sem projeto de país, as medidas de inclusão não tiveram como preparar a sociedade: não incluíram os que já estavam incluídos, dispensando-se de educá-los. Boa parte da disputa política que corta o país nos últimos anos – expressa nas tensões entre PT e PSDB – tem a ver com isso. A sociedade não mais se reconhece a si própria, não sabe bem a direção a tomar e o que esperar, e passa a se defender com os recursos de que dispõe. Invariavelmente, projeta sua agressividade para o campo político, contaminando-o. Como os partidos não são civilizadores, como não existem propostas claras para ninguém e como as instituições de intermediação social funcionam muito precariamente, tudo fica solto no ar, meio desconjuntado, fora de controle e sem eixo.O clima eleitoral potencializa isso tudo. O baixo nível prevalece em todos os níveis, como se não houvesse espaço para a sensatez, a serenidade e a ponderação. O maniqueísmo grosseiro e rasteiro dá o tom: existiram sempre santos e demônios, massas e elites, pobres e ricos, farsantes e autênticos, numa falsificação grosseira da vida brasileira como ela é e numa deturpação do conflito democrático. De intransigência em intransigência, de ódio em ódio, de polarização em polarização, a política vai sendo rebaixada, coberta por uma nuvem de adjetivos, impropérios e simplificações. Trata-se o país como se ele estivesse em guerra civil. Perdem-se oportunidades preciosas para consolidar a democracia e construir um futuro mais consistente.Não pode espantar, assim, que entre junho de 2013 e junho de 2014, não se tenha avançado. Também não surpreende que atitudes violentas e selvagens continuem a proliferar nas manifestações, a provar que a falta de coordenação, de centros diretivos e de estruturas organizacionais mínimas termina por expor as manifestações a muitas intempéries.A violência que atrapalha e desgasta as manifestações também é de um tipo novo. Sua persistência mostra que não há política capaz de incorporar e direcionar (portanto, educar e civilizar) os diferentes setores sociais revoltados.Não se trata de black blocs, de quem se pode discordar mas que carregam consigo um “ódio” direcionado ao sistema. Os que, ultimamente, têm quebrado, batido e incendiado são personagens que se põem abertamente fora da política, fora da massa e da luta pela conquista do que quer que seja. São simulacros de cavaleiros do apocalipse, interessados em fazer não com que o mundo se reorganize, mas sim que se desfaça numa grande explosão final. Não têm qualquer ideologia, não são anticapitalistas nem radicais da democracia. Não são anarquistas. Nada representam, portanto. Somente conseguem aparecer, causando caos e balbúrdia entre manifestantes com causas, porque estes últimos não têm estruturas de segurança e proteção, porque a polícia não sabe como agir e porque há, em parte da sociedade, uma dose alta de conivência, movida pelo fascínio do espetáculo da violência, pela passividade e pela confusão ideológica.Os arruaceiros nem sequer são provocadores. Sua função é servir como porta de entrada para todos os que desejam se infiltrar, provocar e desmoralizar as manifestações pacíficas e combativas das ruas. Não são inimigos da ordem, mas da democracia e da mudança social.De um junho a outro não houve avanços, mas as coisas ficaram mais claras. Não a ponto de levarem à convicção de que alguma unidade de pensamento e ação deve vigorar entre as forças políticas democráticas e reformadoras – que ainda permanecem dedicadas à destruição recíproca em nome da conquista do poder. As coisas ficaram mais claras para os cidadãos, que passaram a compreender que a luta das ruas pode lhes prestar um importante serviço: na medida em que encontrar ritmo e molejo políticos, renovará a política como um todo e funcionará como efetivo fator de progresso social.
Porque a política democrática administra o presente mas retira sua poesia da construção consciente do futuro.
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