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Por Raul Motta |
Nenhuma pessoa decente pode ser
contra a vinda de médicos estrangeiros para o Brasil, assim como contra a ida
de brasileiros para outros países. Nenhuma pessoa decente pode ser contra a
livre circulação de pessoas pelo mundo. E nenhuma pessoa decente pode deixar de
considerar que a situação da saúde pública no país é tão grave, tão
terrivelmente grave, que qualquer colaboração, qualquer ajuda, precisa ser recebida
de braços abertos e com palmas.
É mesquinha a campanha que
estão tentando fazer contra os médicos estrangeiros que começaram a chegar via
programa Mais Médicos. Eles não são o problema, mas parte da solução. Mas não
são a
solução, como muita gente parece sugerir. O essencial está sendo trocado pelo
secundário, coisa bem típica entre nós. Perdemos tempo precioso com coisas que
não são fundamentais. Polarizamo-nos pelo prazer único de ser contra ou a
favor, preferencialmente para atacar ou defender o governo. Deixamos de ver o
mais importante e passamos batido por problemas reais que, por não serem
devidamente considerados, entram na corrente sanguínea e ficam lá, entupindo as
artérias.
Nem o mais bem organizado
exército popular de médicos estrangeiros fará com que melhore o sistema de
saúde brasileiro. Não reconhecer isso é simplesmente mentir. Poderá ajudar
temporariamente, topicamente, mas não tirará o país do buraco. Aliás, nem o
mais bem organizado exército de médicos brasileiros faria isso. O fator
"gente" é só um dos itens problemáticos. E de modo algum pode ser visto
ou avaliado pelo ângulo do número, da quantidade.
Podem ser bons e competentes os
estrangeiros que estão a chegar? Podem, com certeza! Podem não ser? Podem
também. Terão de ser avaliados, como acontece, ou deveria acontecer, com cada
um de nós, pobres mortais. Terão de ser treinados, para que recebam os
conhecimentos de que não dispõem e assimilem as condições em que irão atuar. O
ponto, aqui, é saber se terão o treinamento adequado e no tempo estabelecido (3
semanas). Seja como for, deverão ajudar bastante, nessa hora complicada que se
atravessa.
Os companheiros cubanos, por
exemplo, que ganham destaque por serem da Cuba socialista e chamam atenção pelo
número (4 mil), não são somente companheiros: são médicos, formados num sistema
de saúde que funciona bem, com experiência internacional e interessados em
conhecer o Brasil. Serão de grande valia por aqui.
Há um aspecto desagradável na
forma de contratação. É ruim que o governo brasileiro pague ao governo cubano a
bolsa devida aos médicos para que, depois, o governo cubano decida quanto cada
um vai receber e transfira o dinheiro. É ruim não porque o governo cubano não
deva fazer isso. Não deveríamos nos intrometer no modo com outros povos se
organizam e instituem suas relações trabalhistas. Mas se o esquema é aquele,
então o governo brasileiro deveria repassar ao cubano somente o valor que será
efetivamente entregue pelos cubanos ao médico. Se não for assim, estaremos
prestando uma ajuda financeira a Cuba e não é desse modo que ajudas interestatais
ou intergovernamentais devem ser feitas.
Ninguém deveria ser contra que
um país mais rico ajude outro, mais pobre. O Brasil pode e deve ajudar Cuba, se
for esse o caso. Mas não de forma dissimulada e indireta. Não é porque os
médicos cubanos são todos funcionários do governo cubano que a bolsa deles
deveria ser paga integralmente ao governo cubano para que ele decida o quanto
cada médico receberá. Se cada médico cubano receberá, digamos, 4 mil reais em
vez de 10 mil, o governo brasileiro deveria desembolsar 4 mil reais, e não 10
mil. Para onde irão os outros 6 mil? Que Cuba alegue que serão administrados
para evitar que a desigualdade cresça na ilha ou encaminhados para as famílias dos
médicos é justo e razoável, mas não custa nada deixar tudo isso mais claro. Se
a ideia é ajudar o governo cubano com alguns milhões de reais, nenhum problema.
Mas que seja dito com todas as letras. Algo simples de ser feito.
É uma história mal costurada,
feita sob medida para estragar uma boa ideia.
Para parte da imprensa, dos
profissionais da área e da opinião pública, os médicos cubanos são um problema
enorme, quase de lesa-pátria. Não se discute nada muito sério, como se o fato
de Cuba ser um país socialista pusesse em risco a competência de seus médicos.
Esse segmento opera por reverberação, ampliando as críticas dos que são contra
o programa. Não faz as perguntas certas, nem investiga a contribuição que pode
vir dos cubanos, que atuam maciçamente em vários países do mundo e são famosos
porque integram um sistema de saúde que causa inveja. Alguns deles já estiveram
no Brasil, participam de seminários e congressos com profissionais brasileiros.
Podem não dominar as “últimas tecnologias”, mas o atendimento que prestam não é
de má qualidade. Não está dito em livro nenhum, aliás, que boa medicina depende
de boas tecnologias e exames sofisticados em profusão.
O sistema de saúde cubano é
conhecido e admirado. Fala-se bem dele em todo lugar, especialmente porque é
eficiente e produz resultados assombrosos. O serviço é gratuito e baseado na
medicina de família. Há médicos aos montes, numa proporção que os países mais
desenvolvidos não conseguem ter (são 78 mil, um médico para cada 150
habitantes). Resultado: indicadores sociais fantásticos. Baixíssima
desigualdade, mortalidade infantil de 5 por mil, expectativa de vida de 79
anos.
Tudo isso é reconhecido internacionalmente e frequenta a agenda e o
discurso de várias organizações acima de qualquer suspeita (a OPAS e a Unicef,
por exemplo). Mas, por aqui, não é notícia e nem é levado em consideração. Tudo
vira ideologia e crítica superficial.
Na outra ponta, a das torcidas
a favor, é boba, falsa e desprovida de sentido cívico a posição que acha que
toda e qualquer crítica ao Mais Médicos ou aos profissionais estrangeiros é um
exemplo de reacionarismo ou de “elitismo” dos médicos brasileiros. Os
dirigentes das associações e dos sindicatos médicos não são, em bloco, os
insanos dinossauros que a moçada deseja pintar. Estão reverberando a posição de
seus representados (são corporativistas, óbvio, assim como quaisquer outros
dirigentes associativos) e tentando por na mesa alguns pontos para discussão.
Parte do que falam também é falado por pesquisadores, médicos da família e
sanitaristas engajados nas melhores causas públicas.
Valeria a pena separar o
joio do trigo, aqui também.
A fuzilaria recíproca e
generalizada, assim como as lágrimas de emoção derramadas pelos médicos
estrangeiros que estão a chegar, não ajudam em nada a que se equacione o
problema da saúde no país.
O fundamental é que os
responsáveis pela política brasileira de saúde ataquem o problema no seu todo e
deem ao sistema o que ele necessita para funcionar bem. Antes de tudo, esclarecendo
todas as decisões que vierem a ser tomadas, tintim por tintim e nos mínimos
detalhes. E, depois, criando condições para que o ingresso de novas pessoas
qualificadas no sistema produza saúde de qualidade, e não somente redes de
solidariedade, indignação e esperança.
Professor, como sempre sua análise é sagaz e extremamente pontual. Infelizmente o texto é a típica construção que não atravessa e apunhala determinadas mídias, como também não chega nas filas de supermercado. Seria incrível se os intelectuais tivessem um alcance maior. As últimas semanas têm sido um reflexo escancarado do conservadorismo da sociedade brasileira. Seja enaltecendo a homofobia como a moral a ser contemplada para o heterossexual brasileiro, seja para observamos uma xenofobia direitista e pequeno-burguesa. O peculiar é que estamos importando (ou sempre tivemos, mas de maneira mais dissimulada) o que há de pior na sociedade francesa (nos dois exemplos que citei). Adorei o texto, acredito que a política do Mais Médicos deva ser reavaliada e também para que se torne mais clara apresentar como (e onde) serão utilizados os R$ 6.000 restantes. Entretanto, onde ficaria a soberania de Cuba? Hm, se bem que acabamos de ultrapassar qualquer limite de soberania no país de Evo Morales... É as coisas andam bem estranhas na terra de Pindorama.
ResponderExcluirAbraço professor!