A primeira vez que ouvi o nome
de Carlos Nelson Coutinho foi, creio, em 1974, quando Gildo Marçal Brandão me
apresentou aos ensaios reunidos em Realismo
e Anti-realismo na literatura brasileira, livro de um grupo de ensaístas
que tinham o filósofo húngaro marxista Gyorgy Lukács como referência. O livro
acabara de ser publicado pela Paz e Terra. Lukács era, naqueles anos, para o
grupo de estudantes e professores que eu integrava, a máxima expressão do
marxismo que pretendia reivindicar, ao mesmo tempo, renovação e rigor. Fazíamos
uma espécie de “marxismo acadêmico”, concentrado no plano do estudo, obrigados
a isso pela dura repressão política que praticamente extinguira os partidos de
esquerda do cenário nacional. Havia um clima de “intelectualismo” meio que refratário
à ação política, mas as condições objetivas eram brabas, e justificavam a
cautela. Vivíamos à espera do retorno do príncipe moderno, ou seja, de um
partido político revolucionário.
Eu lera Gramsci alguns anos
antes, incentivado por Lúcio Flávio Pinto na Escola de Sociologia e Política.
Na época, fazíamos a revista Di...fusão,
de que participavam também Reginaldo Forti e Claudio Kahns. Era uma revista de
centro acadêmico, na qual publiquei minhas primeiras resenhas. Lúcio sugeriu
que lêssemos as notas de Gramsci sobre jornalismo para ganharmos base teórica.
Li-as e me entusiasmei muito, mas a leitura não teve sequência. Mas o modo
gramsciano de fazer marxismo, expresso naquelas notas, me influenciou sem que
eu me desse conta, suavizando a assimilação que fazia do lukacsianismo de meus
colegas. Lukács me dava alguns bons esquemas e boas categorias com que fazer
luta ideológica, mas não resolvia satisfatoriamente a questão da política, eu
perceberia mais tarde, quando o troquei por Gramsci. Conversei centenas de
vezes sobre isso com meu grande amigo Gildo Marçal Brandão ao longo daqueles anos. Até sua morte prematura, em 2010, o tema nunca saiu da conversa.
Mas ali, em 1974-1975, éramos
todos lukácsianos e o livro em que estava o artigo de Carlos Nelson foi como
que a abertura de uma porta para a reflexão crítica. Fui atrás de outras coisas
dele, e descobri, com surpresa, que aquele cara que tinha tanto a dizer era
pouco mais velho do que eu e tinha muita coisa na bagagem. No livro sobre o
antirrealismo, ele dialogava com Lima Barreto, ampliando o dialogo que havia
feito com Graciliano Ramos e outros em Literatura
e Humanismo (1967), livro que li com enorme interesse. Maravilhavam-me o
estilo fluente, a escrita sedutora e a agenda teórica de Carlos Nelson. Ainda
se ouviam os ecos do marxismo althusseriano quando devorei O Estruturalismo e a Miséria
da Razão, que ele
publicara em 1972 também pela Paz e Terra. Um cara que publicara dois livros
como aqueles antes dos 30 anos de idade, pensei, merecia respeito! Ainda mais
sendo marxista, luckasiano e comunista... e no Brasil.
Mas seria somente em 1976 que
eu e Gildo tomaríamos a iniciativa de tentar entrar em contato com Carlos
Nelson. Faríamos isso valendo-nos de Nelson Werneck Sodré, com quem
conversávamos para organizar a revista Temas,
que viria à luz em 1977. Sodré nos informou que Carlos Nelson estava em Paris e
eu me propus a escrever para ele. A intenção era
convidá-lo para escrever em Temas e
na revista Escrita Ensaio, que
eu e Gildo editávamos para a Editora Escrita, de Wladir Nader. Em
seu primeiro número, dedicado à cultura brasileira, a revista da Escrita traria
um texto de Carlos Nelson.
Começaria ali, naquela primeira
de incontáveis cartas, uma amizade que durou até o dia 20 de setembro de 2012,
quando Carlos Nelson morreu aos 69 anos.
Trocamos muitas cartas e posso
dizer que nossa amizade nasceu pelo correio. Somente nos conhecemos em 1978,
quando ele voltou ao Brasil. Mas antes disso já havíamos conversado sobre
praticamente tudo, e eu já havia imaginado como é que seria a figura daquele
baiano tão simpático, erudito e bem-humorado nas cartas. Quando fui a seu
encontro, num pequeno apartamento da Rua Barata Ribeiro, no Rio, era como se já
o conhecesse há décadas. Dar-se-ia o mesmo, aliás, com Leandro Konder.
Guardo essas cartas como se
fosse um tesouro particular. Elas dizem muito a meu respeito, me ajudam a
entender quem me tornei, as opções que fiz, as relações que estabeleci.
Na época em que a
correspondência cresceu, havia nos ambientes de esquerda a questão do
eurocomunismo. O Partido Italiano e o Partido Português punham-se em lados
distintos na Europa, e me lembro da dedicação com que Carlos Nelson me
convenceu do avanço que representavam as ideias italianas, que no início eu via
com suspeita. Usávamos metáforas para evitar falar em partido comunista e
comitê central, pois achávamos que a censura poderia se interessar por nossa
correspondência. A ideia era que “as roupas do príncipe moderno” haviam ficado
pequenas demais e necessitavam de reforma urgente. Aos poucos, tornei-me tão
“eurocomunista” quanto ele. Tornei-me, também, um consumidor voraz dos textos
democráticos que o Comitê Central do PCB fazia chegar ao Brasil (via Voz Operária), e que eu sabia contavam
com a ajuda de Carlos Nelson, que integrava na Europa o grupo de assessores que
Armênio Guedes organizara para modernizar o partido no plano da formulação
política. Quando saiu na revista Encontros
com a Civilização Brasileira (nº 9, 1979) o artigo de Carlos Nelson sobre a
democracia como valor universal, eu já lhe conhecia o eixo e as conclusões, mas
nem por isso pude deixar de ver ali um elemento que ajudava demais ao que se
fazia no Brasil naqueles anos em termos de luta contra a ditadura. Além do
mais, era um texto que atualizava o marxismo político, e o convertia numa
ferramenta em condições de dialogar com a ciência política acadêmica, que
começava então a se firmar. Pouco depois, ajudei a Editora Ciências Humanas a
publicar o volume de Carlos Nelson A
democracia como valor universal, que trazia aquele texto seminal e mais
alguns outros. Participei ativamente da redação da “orelha” feita por Armênio
Guedes, sugerindo acréscimos ou cortes como se fosse um texto meu. Fizemos isso
na redação do jornal Voz da Unidade,
em São Paulo, que então começava a circular.
Tudo isso é história, mas é sobretudo história de uma amizade.
De final dos anos 80 para
frente, mantive intensos contatos com Carlito. Ficava em sua casa quando ia ao
Rio. Quando fui para Roma (1984-1985), ele me visitou uma vez e ficou alguns
dias em casa, depois de termos participado de um seminário em Ferrara. Passamos
a trocar milhares de e-mails assim que nos informatizamos, mais pro fim da
década. Conversamos mais e melhor por escrito do que por telefone.
Fizemos muitas coisas juntos. A
edição dos Cadernos do Cárcere de
Gramsci foi a mais empolgante e importante delas. Toda a ideia da edição, sua
concepção, o plano editorial, o estudo que deu origem a ele, tudo isso foi obra
de Carlos Nelson. O trabalho braçal, sobretudo de tradução, foi especialmente
dele e de Luiz Sergio Henriques. Fiquei com o nome ali por generosidade dos
dois, e talvez por um reconhecimento dos largos anos em que trocamos ideias
sobre o assunto.
Saímos do PCB quase ao mesmo
tempo, ainda que não de modo articulado, por volta de 1983. A motivação teórica
e ética era a mesma, os motivos operacionais algo distintos. Em São Paulo, eu
estava profundamente entranhado na vida do partido, participava da direção
estadual, entrara em choque frontal com o Comitê Central. O grupo carioca em
que estava Carlito estava mais no plano intelectual, cultural. A linha geral,
porém, era a mesma: o partido bloqueava o esforço de renovação política e
teórica de que os comunistas necessitavam. Não dava para ser coerentemente
marxista sem uma ruptura.
Nem sempre estivemos do mesmo
lado depois que saímos do PCB. Ele, que sempre dizia não saber viver sem um
partido, passou pelo PSB, foi para o PT e depois para o Psol, ao passo que eu
fiquei fora de partidos. Cheguei a lhe dizer, em tom de brincadeira, que ele
trocava demais de sigla partidária porque sempre exigia demais de cada uma
delas. A resposta, repetida várias vezes, seria sempre que “eu não mudo de
lado, nem de posição, os partidos é que fazem isso”. Eu também gostava de
provocá-lo dizendo que o Carlito da democracia como valor universal era muito
melhor que o Carlito que teorizava sobre a “contrarreforma” empreendida por FHC
e Lula. Vi-me várias vezes defendendo o governo Lula contra ele, que criticava
com veemência o PT por ter abandonado a fronteira das reformas sociais
e se entregado ao “eleitoralismo”. Divertíamo-nos (a sério) com essas
sinuosidades e com o transformismo que parecia afetar os governos de esquerda.
Nunca chegamos a conversar a fundo sobre isso, ainda que tenhamos planejado
fazê-lo. Nossas diferenças ficaram em estado latente, mais que manifesto.
Jamais atrapalharam nossa amizade.
A vida, os compromissos
profissionais e as distintas opções políticas ajudaram a fazer com que os
contatos diminuíssem entre nós. Inconscientemente, fomos reduzindo as
conversações, deixando que elas aflorassem somente quando possível, quase ao
acaso. Quando conversávamos, lamentávamos o fato, mas não conseguimos acumular
forças para reverter a situação.
Esquecer as diferenças e divergências que
tivemos seria desrespeitar sua memória, seria uma ofensa a alguém que sempre valorizou
a crítica e a discussão de ideias. Os mais próximos o recordarão como uma
personalidade exuberante, dotado de uma humanidade excepcional e sempre
disposto a rir de si próprio e das bobagens humanas. Um amigo fraterno. Carlos
Nelson Coutinho foi durante mais de 50 anos um comunista e sempre se definiu
desse modo. Considerava ter mudado de siglas, mas não de lado. Em um país no
qual virar-a-casaca é um fenômeno político de massas, poucos poderão ao final
de suas vidas dizer a mesma coisa.
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