O cientista político Marco Aurélio
Nogueira sentiu na pele a radicalização política destas eleições quando
anunciou a seus 751 seguidores no Facebook o voto em Marina Silva (PSB) no
primeiro turno. Ainda não fez as contas de quantos amigos perdeu ao tomar partido.
“Ouvi mais elogios, mas muitos falaram: ‘Que decepção!’”, diz. Professor de
teoria política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), ele se prepara agora
para perder mais amigos depois de ter assinado um manifesto de intelectuais que
se identificam com o rótulo de “esquerda democrática”, em apoio à candidatura
de Aécio Neves (PSDB). Nogueira já militou no antigo Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e ainda se identifica como “eurocomunista”.
ÉPOCA – Por que a polarização política
chegou a nível de radicalização destas eleições?
Marco
Aurélio Nogueira – É um fato inédito. Depois da ditadura para cá, a que se
aproxima mais desta eleição foi a disputa entre Fernando Collor e Lula, em
1989, quando houve muita apelação. Agora, há uma diferença importante: a
reverberação. As redes sociais são câmaras de eco que incrementam tudo o que se
fala. O barulho de um alfinete se compara a um trovão. O baixo nível do debate
também reflete a desqualificação dos partidos. Os partidos perderam a
capacidade de orientar seus militantes. Não há orientação clara a respeito do
que deve ser feito, especialmente quando se tenta pensar a política como um
exercício que não é dedicado a destruir o adversário. A política tem uma face
nobre. Quem tem condições de impulsionar a face nobre da política são os que
estão bem colocados no jogo político: as grandes lideranças, os intelectuais,
os partidos. Os partidos deveriam ser canais de agregação de lideranças e
intelectuais que pudessem funcionar como educadores cívicos. Mas não atuam
assim.
ÉPOCA – É pela falta de qualidade dos
quadros políticos?
Nogueira
– É devido mais à perda da capacidade de agregação dos quadros que aos quadros
individualmente considerados. O ponto nevrálgico dessa discussão são os
partidos políticos, que podem fazer a mediação institucional e associativa.
Quem pode organizar a qualidade da política não são os indivíduos. Os partidos
precisam ser recriados. Os partidos continuam a ser símbolos que orientam as
pessoas. Mas não conseguem mais funcionar como modeladores e organizadores da
sociedade – como os partidos comunistas já foram no passado –, porque as
pessoas não querem mais ser comandadas. Como eles se recriarão? Não sei. Mas
não conseguirão dar esse salto para a frente na base da recuperação de qualquer
mentalidade burocrática ou autoritária. Não basta uma direção de fibra de aço.
ÉPOCA – A crise dos partidos não é mundial?
Nogueira
– Não é um problema exclusivamente brasileiro. Parte do problema tem a ver
com nossa época, em que o eixo passou a ser a individualização, não a
associação. Vemos isso naquela propaganda que diz: “O importante é ser você
mesmo”. Ou seja: vire-se. Faça o melhor da sua parte, que o resto acontecerá
por extensão. Isso não é verdade. São necessárias mediações para produzir uma
espécie de força coletiva que venha das diferentes individualidades. Ainda não
conseguimos resolver bem isso no Brasil. Onde há grandes tradições associativas
e maior vida comunitária, como nos Estados Unidos e na Europa, o problema é
menor.
ÉPOCA – Após as jornadas de junho, o senhor
disse que “nas redes sociais, não há debate democrático” e que, no Brasil, “o
debate é movido pelo ódio, mais que pelo bom-senso e pela paixão cívica”. Qual
é a explicação para isso?
Nogueira
– Quando você se comunica com alguém pelas redes, é movido pela explosão, não
pela reflexão. Você escreve uma frase de 140 caracteres e aperta uma tecla. O
debate político, vivido dessa maneira, fica irremediavelmente empobrecido.
Pode-se dizer que isso representa o início de uma nova forma de fazê-lo.
Reconheço que há grandes vantagens de rapidez, interação e troca de opiniões. É
algo que ainda precisa ser assimilado. Talvez, fora de uma disputa eleitoral,
isso ocorra com mais facilidade. Sou frequentador das redes sociais e já tive
boas discussões. Fora da eleição. Na eleição, é quase impossível. Nestas
eleições, sob estas circunstâncias, é mais impossível ainda.
ÉPOCA – Quais serão os desdobramentos dessa
polarização?
Nogueira
– Não acho que o mundo acabará, mas também não vejo nenhuma consequência
positiva. Um dos piores efeitos da polarização PT-PSDB foi forçar a sociedade a
um tensionamento de A contra B, que não produz vida coletiva muito positiva.
Além da polarização PT-PSDB, temos a polarização NordesteSudeste, ricos contra
pobres. Os partidos contribuíram para isso. Especialmente o PT, porque foi
assim que ele se constituiu. Se apresentou sempre como o polo que regeneraria a
sociedade pela ascensão dos explorados. O PT amadureceu sem completar o
movimento, que seria propor-se a ser partido de toda a sociedade. O PT continua
a se apresentar como o partido dos pobres. Inevitavelmente, isso transporta uma
polarização social para a política.
ÉPOCA – Uma corrente de cientistas
políticos vê a polarização PT-PSDB como positiva, porque organiza o sistema
partidário, muito fragmentado. Qual sua opinião?
Nogueira
– Se for para corrigir os excessos da fragmentação partidária, é bom que
tenhamos uma confluência do sistema para dois polos. Mas isso não resolve o
problema da qualidade da polarização. Se cada um dos polos não consegue
apresentar aos espectadores o que os diferencia, não sei o que ganhamos com
isso. A polarização PT-PSDB não deixou claro o que os diferencia, a não ser na
base de uma certa apelação: “Nós somos os pobres, vocês são os ricos”, “Nós
somos keynesianos, vocês são neoliberais”. Para mim, as visões entre PT e PSDB
não são tão distintas assim, mas são apresentadas como se fossem completamente
divergentes, numa simplificação da discussão substantiva. Onde está o busílis
da questão econômica entre PT e PSDB? Na maior ou menor atribuição de peso à
regulação estatal. Ao que me consta, o PSDB nunca foi inimigo visceral da
regulação estatal. O PT acredita mais na regulação estatal, mas não impediu que
o governo Lula continuasse e corrigisse a política econômica do PSDB. No
passado, houve a expectativa de uma composição PT-PSDB. Como inimigos mortais
puderam cogitar trabalhar juntos? Talvez porque a diferença entre eles não seja
tão grande. Talvez porque ela tenha sido artificialmente amplificada.
ÉPOCA – Por que Marina não conseguiu quebrar a polarização?
Nogueira
– Ela apanhou demais e não teve condições de fixar sua voz no cenário. Marina
caiu do céu como candidata num dia de agosto e não teve tempo de se preparar.
Quem tinha o discurso afinado era Eduardo Campos. Ele colocaria na mesa o
debate sobre a nova política. E o faria do jeito Eduardo Campos. O jeito Marina
é diferente: mais à esquerda, ambientalista, temperamental, com uma linguagem
empolada, oscilante, fala uma coisa, depois corrige. Ela é parte integrante de
um movimento – a Rede, os verdes, os ecologistas –, de um pessoal que não se
cansa de discutir. As conferências de uma hora duram quatro! Eles não param! É
um negócio perturbador! Eles procedem pelo consenso, mas um candidato tem de
dar respostas num curtíssimo prazo. Marina lançou o programa num dia e, no dia
seguinte, já tinha de corrigir. Se eu tentasse extrair da Marina a visão de
nova política, perceberia também várias falhas, devido a uma visão um pouco
romântica da política e a dificuldades de formulação. Não é verdade que a nova
política seja feita pelos melhores. Isso é um papo bobo.
ÉPOCA – Dá para haver terceira via no
Brasil?
Nogueira
– Vale a pena perguntar se “terceira via” é o modo correto de pensar essa
questão. A terceira via, como conceito, é o caminho entre o socialismo e o
capitalismo. Podemos traduzir isso como um expediente para quebrar polarizações
– uma terceira opção com o que há de melhor no polo A e no polo B. Isso é
possível no Brasil. Poderia criar uma dinâmica política e social mais
interessante. Mas não vejo a possibilidade desse terceiro polo mediante o
surgimento de uma força que não está no cenário e caia do céu. Marina foi uma
tentativa disso e mostrou que não tem viabilidade.
ÉPOCA – No primeiro turno, o senhor
declarou voto em Marina pelo Facebook. Quantos amigos perdeu por isso?
Nogueira
– Ainda não fiz essa conta. Quando você publica uma coisa assim, há dois tipos
de manifestação. A grande maioria concorda com você. Faz isso porque é mais
fácil, não quer atrito, gosta de você ou não tem tempo para desenvolver uma
contestação. Ouvi muito mais elogios. Mas muitos falaram: “Que decepção!”.
Assinei um manifesto em favor de Aécio – e continuo de esquerda. O manifesto é
de pessoas de esquerda que não são revolucionárias ou adeptas da luta de
classes, mas formam uma esquerda democrática. Quantos amigos perderei? Se pegar
o povo da universidade, a maioria é petista. Perderei muitos amigos, mas não
tenho objeção a isso. A vida tem de ser calculada levando em conta as perdas e os ganhos
(risos).
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