Quanto mais se observa o
mundo, a América Latina e o Brasil, mais se percebe que a nossa é uma época com
pouca "cabeça" politica, pouca direção. As mudanças em curso abalam a
vida cotidiana, as relações sociais e o Estado, mas não têm um autor que se
possa reconhecer. Apesar de haver uma revolução em marcha, nenhuma revolução
propriamente politica ocorre. A revolução é passiva.
Impulsionadas por essa dinâmica, as
sociedades se fragmentam, se individualizam e perdem instituições. Tornam-se
cada vez mais parecidas entre si, mas dentro delas a diferença se reproduz
incessantemente. Sem centros claros de coordenação, as partes (grupos,
indivíduos, regiões) se afastam umas das outras e seguem lógicas próprias – ainda
que, paradoxalmente, tudo fique mais conectado. Uma multidão de novos sujeitos
gera novos conflitos e contradições, embora não consiga interferir de fato no
jogo político e redirecioná-lo em termos emancipadores. A hiperatividade da
sociedade civil ocorre mais em função da necessidade de autoexpressão que da
disposição para organizar consensos. O risco de fragmentação corporativista da
representação política aumenta, com efeitos deletérios sobre o processo
político: partidos e governos se tornam mais “dependentes” dos interesses que
vicejam em seu interior, perdem potência como representantes e ficam menos
ágeis para tomar decisões.
Com isso, cai a confiança das pessoas nas
instituições políticas. Os próprios politicos enredam-se sempre mais nos meios
especificos da política, sejam eles a disputa eleitoral ou a distribuição de
verbas e favores. A relação com os negócios agiganta-se. Cresce o risco de
corrupção, diminui a densidade ética da política. Todos se tornam mais
preocupados em gerir recursos de poder e maximizar interesses eleitorais, deixando
de agir para organizar novos consensos e consentimentos. Desajustada pelos
novos termos da vida social, a política passa a produzir mais problemas que
soluções. Deixa de ser o principal fator de composição social e estabelecimento
de equilíbrios e consensos. Sociedades, indivíduos, grupos, nações e Estados
tornam-se partes soltas de um conjunto sem muita articulação sistêmica.
Mantém-se ativa, no entanto, uma expectativa
social de “proteção” e operosidade estatal, sobretudo por setores
marginalizados e por uma classe média que, em parte expandida pela incorporação
de contingentes populacionais beneficiados por programas governamentais, e em
parte empobrecida pelo desemprego e por politicas de ajuste, afirma seus
direitos perante o Estado. Trata-se de uma expectativa que se liga à exigência
de que os governantes "decidam e façam" (o que incentiva tendências
populistas e de hipertrofia do Executivo), mas que se combina com uma crescente
dificuldade para que se aceitem “ordens” que não nasçam de alguma modalidade de
consulta ou interação. Pouco importa que os mecanismos deliberativos adotados
produzam resultados precários, desde que eles sirvam para que se manifestem
indignação, carências, desejos e opiniões.
Aumenta assim a disposição social para
instituir uma nova “zona de ação política”, menos institucional e mais
individualizada, de movimentação contínua, de pressões antissistêmicas
erráticas, viabilizadas pelas maiores facilidades de comunicação e contato.
Desponta uma nova politicidade, cujo teor e formato institucional ainda estão
por ser estabelecidos.
Novas modalidades de engajamento seduzem
antes de tudo os jovens, mas não se resumem a eles, pois tendem a crescer como
uma espécie de paradigma da ação política. Sua característica essencial é o
questionamento do ativismo tradicional, sustentado por organizações
hierarquizadas, classes sociais e causas gerais. O novo ativista luta por
direitos e reconhecimento, não por poder. Não sacrifica a vida pessoal em nome
de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referencia por
líderes ou ideologias. Age festivamente e sem rotinas fixas, valendo-se muitas
vezes da sátira e do deboche. É multifocal, abraça várias causas
simultaneamente. Sua mobilização é intermitente. Muitos atuam de modo
pragmático, profissionalizam-se como voluntários, buscam resultados mais do que
confrontação sistêmica. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta
é a conectividade.
Não há, porém, muralhas intransponíveis
separando velhas e novas formas de ativismo, que se cruzam e podem se combinar
de diferentes maneiras, beneficiando-se reciprocamente. Se suas agendas contém
distintas ênfases e questões, tambem estão repletas de temas que somente podem
ser enfrentados com sucesso se se interpenetrarem e forem articulados em uma
plataforma de síntese politica.
O novo ativismo pode ser uma importante
alavanca de construção do futuro. Será isso, no entanto, na medida em que considerar
o conjunto da experiência social e convergir para a reforma democrática da
sociedade, do Estado e da politica. Se tentar evoluir solitariamente, fechado
em suas causas específicas e na busca de autoexpressão, só produzirá ruído e
efervescência, perdendo em termos de efetividade.
A necessidade dessa articulação está posta
pela vida. Afinal, o social que se fragmenta não desaparece como social. A
dimensão coletiva da existência não se dissolve só porque a individualização se
expande. Ainda continua a ser fundamental combinar ações e promover convergências.
Além disso, os conflitos de classe permanecem mesmo que as classes não estejam
podendo ser atores politicos no sentido próprio do termo. As estruturas de
poder, ainda que possam ter enfraquecidos alguns de seus fluxos, preservam sua
capacidade de emitir ordens, pressionar e coagir. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/05/2012, p.
A2].
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