Quando
o jornalista e crítico de cinema Leon Cakoff morreu, em outubro passado, pensei
em escrever sobre ele aqui neste blog. Não tanto sobre ele ou sobre a Mostra
Internacional de Cinema que ele idealizou e protagonizou durante tanto tempo. Mas
sobre “nós”, o grupo de pessoas que com ele estudaram na Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, entre 1969 e 1972. Seria também, inevitavelmente, um
texto sobre como eu via o Leon, o que me lembrava dele e de como interpretara,
nos anos 70, seu papel na nossa comunidade de estudantes de ciências sociais.
Faria
sentido. Afinal, memórias são para serem recordadas e, quando possível,
relatadas. Ao fazermos isso, nos reconhecemos a nós mesmos, reiteramos ou
recuperamos identidades, interpretamos ou reinterpretamos a história, mesmo que
em escala pequena, na dimensão da aventura pessoal, grupal.
A
Escola de Sociologia e Política – ela não, mas as pessoas que conviveram nela
em um momento particular – foi para mim bem mais do que a instituição que me
deu um diploma de sociólogo. Ela me formou para a vida. Fez o que a
universidade deveria fazer sempre. Forneceu-me a chance do amadurecimento.
Entrei lá de um jeito, saí completamente de outro. Os que fizeram o mesmo
percurso ficaram gravados na memória e jamais saberei dizer a cada um dele a
importância que tiveram em minha biografia. Até mesmo porque foram poucos os
que se mantiveram em contato, aprofundando amizades e companheirismos. A
maioria foi separada pela vida.
Entre
os que ficaram em contato, a conversa sobre a ESP é recorrente. Todos sonham em
resgatar um dia aquela experiência, fazê-la falar. Estudamos lá em tempos
difíceis, de ditadura, repressão, ameaças. A escola pequena e isolada nos
protegia, e conseguimos estudar coisas e autores que estavam ausentes em outras
faculdades. Fizemos política estudantil em grande estilo: como parte da luta
contra uma ditadura que destruía o país, calava e reprimia, mas que não matava
sonhos. Fomos democratas, subversivos, revolucionários, do jeito que deu. Acho
que cumprimos algum papel. E melhoramos todos como pessoas.
Quando
Cakoff morreu, alguns dos amigos daquela época conversaram entre si.
Solidarizamo-nos com a memória do Leon a partir das nossas memórias. Entre
telefonemas e e-mails, lembramos episódios e eventos que não saem da cabeça.
Como a Santa Festa que organizamos em 1972, com direito a uma marcha pela
cidade de São Paulo para divulgá-la. Não sei bem como, mas o passeio (uma
esbórnia generalizada) foi filmado e eu fui o camera-man! Como a revista Di-Fusão,
na qual publiquei minhas primeiras resenhas. Ou como as manifestações que
fizemos contra o voto nas eleições de 1972 (creio). Numa delas, fui encarregado
de entregar o manifesto que havíamos redigido para o então deputado Franco
Montoro, do MDB, que iria à ESP como paraninfo de uma turma de formandos.
Cumpri à risca a tarefa, tremendo de medo e orgulhoso do ato heroico.
Meu
amigo Lúcio Flávio Pinto, colega daqueles anos e jornalista dos melhores,
publicou um belo texto sobre Leon Cakoff no Jornal
Pessoal que edita em Belém, Pará. Disse muitas coisas que eu diria se
tivesse escrito o texto que planejara. Disse muito mais,
valendo-se do seu talento como escritor e de seu faro de repórter.
Reproduzo-o
abaixo com uma alteração na foto. A que ilustra este post também é do hoje
cineasta Cláudio Kahns, e remonta ao tempo em que estudávamos na Escola. Estão
nelas muitos dos meus colegas de turma. Leon não aparece, certamente porque
na hora estava enfiado em algum cinema vendo um filme...
O
texto de Lúcio, que aqui repercuto, nos ajuda a manter viva a memória de um
tempo que ficou para sempre inscrito na história do Brasil. Um tempo duro, que
conseguimos suportar e enfrentar com os recursos que tínhamos: estudando, namorando,
fazendo política e festa. Recursos que, ontem como hoje, são revolucionários.
Os tempos
sombrios e a alegria de viver
Lúcio Flávio Pinto
Publicado em Jornal
Pessoal, Belém, nº 501, novembro de 2011.
Não conheci
o Leon Cakoff famoso, que criou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,
reduto da fauna e flora cultural da cidade. Esse Leon morreu no dia 16 do mês
passado. Tinha um ano a mais do que eu. Não era muito, mas pesou bastante nos
tempos em que fomos alunos da Escola de Sociologia Política de São Paulo, na
transição dos anos 1960 para os 70, sob o estigma do Ato Institucional número
5, a matriz de chumbo daqueles tempos difíceis.
Depois que
deixamos a escola, só o vi uma vez. Cruzávamos pelo saguão do aeroporto de
Congonhas. Meu primeiro impulso foi ir até ele e abraçá-lo, mas o instinto me
freou. Como Leon reagiria? Poderia me plantar aquele olhar superior e
arrogante, virar as costas e seguir seu caminho, depois de me conceder uns
segundos de sua atenção. Ou podia me abraçar com efusão, dar tapas nas minhas
costas e me permitir acompanhá-lo ao café mais próximo. Depois, cada um por si.
Leon tinha
uma notável percepção das oportunidades e a explorava ao máximo. Adaptava-se
como camaleão às circunstâncias para delas tirar proveito. Seu olhar estava
fixado no alto, no topo, nas culminâncias sociais. Não havia dúvida: faria
carreira. Qual? Naquela época não sabíamos – nem mesmo desconfiávamos. Mas não
ignorávamos que, mesmo estando conosco, Leon Cakoff não era um de nós: se
desprenderia do grupo tão logo alcançasse o lugar que imaginava seu desde
sempre, no alto do picadeiro.
Só era
ligeiramente mais velho do que a maioria de nós, mas tinha mais experiência,
conhecimento da vida. Não tanto quanto sugeria com seu ar de superioridade, sua
ironia e seu sarcasmo, conforme iríamos descobrir aos poucos, Mas devia influir
o fato de ter vindo da Síria, onde nasceu como Leon Chadarevian. Não era o
líder do grupo, mas, presumindo a superioridade que alardeava, o aceitávamos
como guia ou consultor. Era distinto de nós, que formávamos uma irmandade.
A Escola de
Sociologia e Política escapara ao expurgo e perseguição dos inquisidores do
regime militar. Primeira instituição de nível superior na matéria, criada em
1933, ficara como instituição da USP, mas fora do campus. Na praça General
Jardim, estava cercada por bares, boates, restaurantes e as reminiscências das
faculdades isoladas. Os repressores a esqueceram.
Graças a
isso, pôde dispor de professores para ensinar o que, aos olhos dos donos do
poder, era a quintessência da subversão. Ali, ao lado da biblioteca infantil
apropriadamente denominada Monteiro Lobato, tínhamos acesso a alguns itens do
índex do regime, sob as vistas complacentes do muito mineiro Antônio Delorenzo
Neto e do paulistano Vicente Marotta Rangel.
Tomamos
conta do Centro Acadêmico, criamos um cursinho preparatório, com aulas nos
altos do belo casarão onde a escola funcionava, publicamos uma revista (Difusão) e fazíamos nossa subversão nos
limites do tolerado. Numa dessas manifestações, levamos panfletos que redigimos
contra o voto de cabresto (pela anulação do voto como forma de protesto) para o
Cine Metrópole, na linda galeria do mesmo nome, ao lado da Biblioteca Municipal
Mário de Andrade.
Depois de
vermos sessões seguidas do documentário sobre o festival de música de
Woodstock, nos Estados Unidos, deixamos o panfleto nas poltronas e, ainda
tremendo, fomos comemorar nossa ousadia num daqueles muitos botecos que nos
serviam de agasalho e refrigério.
Em época
ruim, péssima, de abuso e medo, éramos felizes porque fazíamos aquilo em que
acreditávamos e estávamos convencidos de que assim mudaríamos o mundo para
melhor. Tínhamos ideais, sonhos, utopias. Leon, sei-o hoje, tinha planos muito
pessoais, que cumpriu com esmero. Era um dos mais badalados personagens da
maior cidade do país e do continente.
Sua morte
recolocou em contato os antigos amigos cabeludos, hoje sessentões a caminho da
mais alta maturidade. Espraiados pelo espaço e pelas especialidades, mantemos
um elo indissolúvel com a nossa história e as nossas esperanças. Ainda não
perdemos de todo a esperança, fonte de jovialidade, que iluminava nosso rosto e
nos dava certa tranquilidade para encarar a realidade hostil.
Como nessa
foto, que o hoje cineasta Cláudio Kahns me mandou, batida por ele, para minha
total surpresa e gratidão. Toda turma foi me levar à despedida na antiga
rodoviária paulistana, uma das minas de ouro do grupo da Folha de S. Paulo,
de Frias & Caldeira, no centro deteriorado da cidade. Eu partia para uma
aventura: viagem rodoviária até Belém, na longínqua e estranha Amazônia da
minha origem (não havia outro amazônida na escola), que provocava espanto e
incredulidade entre os meus caros amigos paulistanos.
Brincávamos
e sorríamos felizes. O mundo era ruim. Mas nós íamos mudá-lo – já, já.
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