“Um amigo deixa o governo e uma amiga assume seu lugar”, declarou a presidente Dilma Rousseff na cerimônia de posse da nova ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Frase bonita e emblemática, capaz de mostrar que nas relações políticas também há lugar para o afeto, a lealdade, a cooperação desinteressada – em suma, para a amizade.Dirigida ao ex-ministro, a declaração soa protocolar. Afinal, se amizade intensa houvesse, ele teria ponderado que seu acumulado de problemas implicaria risco para o governo e não teria insistido em nele permanecer. Em relação à ministra Gleisi, porém, a frase é perfeita e tem tudo para ser o anúncio de uma nova era na Casa Civil da Presidência. Agora, ela está nas mãos de uma mulher jovem, dinâmica, tecnicamente bem preparada, com uma bela trajetória política e que, se não bastasse, se destacou nos últimos tempos pela defesa aguerrida da candidatura Dilma, primeiro, e depois da presidente Dilma. A nova ministra chega com o propósito de somar, não de ser a integrante mais forte do governo; seu objetivo é “cuidar da gestão e do acompanhamento de projetos”. São coisas que indicam uma relação diferenciada, promissora.Foram tantas as demonstrações de afeto recíproco naquela cerimônia que seria o caso de perguntar se não teriam sido elas a manifestação de que a Presidência da República também é um ambiente infestado de inimigos, produzidos inevitavelmente pela dinâmica mesma do poder e da luta política. Se a pergunta faz sentido, quem estaria a atravancar o caminho de Dilma, a assoberbá-la com pressões, a esparramar pedras pelos tapetes do Planalto para retardar suas decisões ou induzi-la ao erro? Seriam esses “inimigos” os responsáveis pelo tão falado imobilismo da presidente, pela dificuldade que teria tido de cortar o mal pela raiz ao saber da delicada situação de Palocci?É razoável que se pense assim. Por estar obrigada a agir num ambiente contaminado, a presidente não tem como se conduzir de modo destemido. Precisa contemporizar, ouvir, ponderar. Parece não ter muita paciência ou jeito para isso. Conta com poucos auxiliares desinteressados e descobre que muitos de seus amigos, aliados ou companheiros são, na verdade, protagonistas ativos de uma operação dedicada a cercá-la, a pressioná-la, a roubar-lhe autoridade. No caso Palocci, não demorou em agir. Simplesmente fez o que pôde na hora que pôde.Os “inimigos” do bom governo no Brasil compõem um elenco extenso e difícil de ser administrado. O principal deles é o próprio sistema com que se governa, o assim batizado “presidencialismo de coalizão”, brilhantemente dissecado pelo cientista político Renato Lessa na edição anterior do caderno Aliás (“Jabuticaba institucional”, 05/06/2011). Trata-se de um sistema de coalizões, ao qual se superpõe um conjunto de fraquezas, idiossincrasias, ausências e excessos. Sem ele, não se governa, mas com ele se governa mal. Para se equilibrar e ganhar “governabilidade”, a Presidência é obrigada a compensar a falta de base parlamentar leal com a entrega de cargos e espaços a diferentes grupos parlamentares, convertidos em aliados. Ganha apoio para aprovar determinados projetos, mas perde capacidade de coesão e gestão. Recebe mordidas por todos os lados, convive diariamente com o inferno das demandas e das chantagens.O sistema poderia funcionar – e ser, assim, mero arranjo para acomodar as coalizões inevitáveis – caso a chamada “classe política” tivesse melhor qualidade e fosse capaz de se autocoordenar. A má qualidade dos parlamentares tem a ver tanto com o despreparo político de muitos deles, quanto com os compromissos que mantém com interesses espúrios ou com setores sociais mais atrasados, fato que transfere para o Parlamento uma demanda de teor verdadeiramente explosivo. Mas também retrata a inexistência de mecanismos que eduquem os políticos, que os façam agir de modo mais coordenado e menos corporativo, mais de acordo com o interesse público do que com interesses privados. Os partidos políticos deveriam ser essas escolas de política, mas não o são. Nenhum deles. Estão todos ou acomodados na tradicional posição de fazer o cerco (e a corte) ao poder, ou às voltas com problemas internos recorrentes ou à espera das próximas eleições. Não se afirmam nem no Legislativo, nem na sociedade.Emergiu desse vácuo outro “inimigo” de Dilma nesses seus primeiros meses de governo. Sentindo que a casa ameaçava pegar fogo, aliados e petistas chamaram um bombeiro conhecido por suas habilidades de negociador. Lula irrompeu em Brasília e trouxe consigo os ventos da inconveniência. Com ou sem intenção, passou a imagem de que é mais forte do que a presidente e de que deseja convertê-la em refém. Enfraqueceu-a perante a opinião pública, sugerindo que se alguém pode de fato coordenar o governo esse alguém está fora, e não dentro, do Palácio do Planalto. Desse ângulo, não admira que tanta atenção tenha sido dada à amizade na última semana.Um último círculo precisaria ser lembrado. Ele tem a ver com algo que se espalha pelo mundo como um furacão. É que a política se dissociou da sociedade e perdeu o respeito dela. Não dialoga mais com ela, nem como “opinião pública”, nem como sociedade civil, nem como estrutura social. O sistema político se isolou, vive encastelado, concentrado em seus próprios interesses. Não se reforma nem se deixa reformar. Produz inúmeros problemas e quase nenhuma solução. Permanece como que acorrentado a um tempo pretérito, ao passo que a sociedade avança pelas ondas líquidas e digitais da vida hipermoderna.Esse conjunto de “círculos inimigos” é mais ameaçador do que qualquer deslize ético, político ou moral de um ou outro ministro. Está na origem desses deslizes. E será contra ele que o governo Dilma, fortalecido pelo início de recomposição da Casa Civil, terá de travar suas mais importantes batalhas. [Publicado no Caderno Alias, O Estado de S. Paulo, 12/06/2011].
Porque a política democrática administra o presente mas retira sua poesia da construção consciente do futuro.
segunda-feira, 13 de junho de 2011
Amigos, inimigos e batalhas políticas
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11 comentários:
"O sistema político se isolou, vive encastelado, concentrado em seus próprios interesses. Não se reforma nem se deixa reformar. Produz inúmeros problemas e quase nenhuma solução".
Pois é, Marcos! E lendo seu texto fiquei pensando em como os cientistas políticos podem contribuir atualmente para reformular os desenhos institucionais de modo a transformá-los em meios mais colaborativos e, consequentemente, menos proliferadores de inimigos.
O sistema político se isolou, vive encastelado, concentrado em seus próprios interesses. Não se reforma nem se deixa reformar. Produz inúmeros problemas e quase nenhuma solução".
Pois é, Marcos! E lendo seu texto fiquei pensando em como os cientistas políticos podem contribuir atualmente para reformular os desenhos institucionais de modo a transformá-los em meios mais colaborativos e, consequentemente, menos proliferadores de inimigos. Crédo!
Peço desculpa pelo "s" intruso que coloquei na grafia do seu nome, no comentário anterior :D
Concordo com vc, Nathalia. E acrescento que a reformulação institucional, para se realizar em sentido democrático, precisa contar com a ajuda de todos. Se ficar nas maos de pessoas excessivamente especializadas, tenho medo que não avance.
Com certeza. Semana passada isso foi discutido em um evento,o Brasil Gov 2.0, tem um pouco sobre o que foi debatido aqui: http://blogs.estadao.com.br/link/governos-em-busca-do-2-0/
Como foi bem pontuado nesta matéria, o problema é que a sociedade civil se movimenta, mas o governo continua encostado. E quando penso em gov 2.0 não penso nem diretamente nas tecnologias, mas nas formas de se relacionar, formular e tomar decisões entre os próprios parlamentares. Essa coisa de amigos, inimigos, galera do bem, galera do mal é tão "dos tempos antigos" para mim! rs. Mas sou um pouquinho pessimista em relação a isso, acho que as transformações mais significativas vão acontecer na próxima geração. Mas não sem esforço, claro. A gente planta agora para colher depois. Aí sim, acredito que será uma bela colheita!
Com certeza. Semana passada isso foi discutido em um evento,o Brasil Gov 2.0. Tem um pouco sobre o que foi debatido aqui: http://blogs.estadao.com.br/link/governos-em-busca-do-2-0/
Como foi bem pontuado nesta matéria, o problema é que a sociedade civil se movimenta, mas o governo continua encostado. E quando penso em gov 2.0 não penso nem diretamente nas tecnologias, mas nas formas de se relacionar, formular e tomar decisões entre os próprios parlamentares. Essa coisa de amigos, inimigos, galera do bem, galera do mal é tão "dos tempos antigos" para mim! rs. Mas sou um pouquinho pessimista em relação a isso, acho que as transformações mais significativas vão acontecer na próxima geração. Mas não sem esforço, claro. A gente planta agora para colher depois. Aí sim, acredito que será uma bela colheita!
Nathalia, não é questão de pessimismo, mas de possibilidade. Transformações macro, que envolvem muitas coisas e muitas pessoas, costumam se estender por períodos largos de tempo, mesmo que disponha da necessária ativação social. No caso da reconfiguração da política, numa linha de política 2.0, sequer a ativação social suficiente existe ainda.
Marco, lendo seu excelente texto, no último domingo, não pude deixar de refletir: seria possível criar no Brasil de hoje um partido político que fosse, em suas palavras, uma escola de política que fizesse seus participantes agir de modo menos corporativo e mais de acordo com o interesse público? Quais seriam as chances desse partido ganhar apoio, crescer e passar a ser uma voz relevante? Quais as principais barreiras?
Carlos, acho que as chances são remotas, ao menos no curto prazo. Um partido que funcionasse como escola de política nas condições teria de nascer de um movimento que partisse da própria sociedade, e não vejo como isso poderia se dar sem um conjunto grande de alterações na postura dos cidadãos, na estrutura da política, nos interesses sociais, etc. Apesar disso, acho que alguma coisa já está em marcha. Como em todo processo político, no momento inicial o novo produz mais ruído e contestação do que proposição e construção.
Quais são os sinais de que "alguma coisa já está em marcha?"
O movimento dos indignados, na Espanha
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