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Nightmares By Scott Garner |
Fantasmas e pesadelos costumam atormentar todos os que tiveram poder um dia. O universo dos “ex” é heterogêneo, mas nenhum deles dorme inteiramente em paz depois de ter entrado em contato com os prazeres que integram o cotidiano de um poderoso. Mesmo suas agruras e seus aborrecimentos são de um tipo especial. Viciam, causam dependência.
A maldição não perdoa ninguém, ainda que nem todos reajam do mesmo modo. Há os que sofrem em público e os que se recolhem, os discretos e os escandalosos, aqueles que retomam a vida de antes e seguem em frente e aqueles que não se conformam e não sabem o que fazer. Quanto mais alto o grau de poder, mais o problema se acentua. Quem já foi presidente da República tem mais dificuldade para assimilar a perda súbita ou anunciada de poder do que um chefe de seção desalojado do cargo.
O filósofo inglês Thomas Hobbes escreveu no século XVII que a tendência geral dos humanos era “um perpétuo e irrequieto desejo de poder, que cessa apenas com a morte”. Segundo ele, isso acontecia não porque os homens buscassem um prazer sempre mais intenso, mas porque intuíam que a conservação e a ampliação constante do poder eram essenciais para que garantissem o que já possuíam. Maquiavel, na Itália, se inquietava diante da dificuldade que tinha para “determinar com clareza que espécie de homem é mais nociva numa república, a dos que desejam adquirir o que não possuem ou a dos que só querem conservar as vantagens já alcançadas”. Não economizaria palavras: “a sede de poder é tão forte quanto a sede de vingança, se não for mais forte ainda”. Idêntica preocupação teria Max Weber, que dizia que quem mexe com o poder faz um “pacto com potências diabólicas” e vai descobrindo que o bem e o certo nem sempre têm significado unívoco. O poder tem razões que a razão desconhece.
Alguém que deixa o poder defronta-se antes de tudo com o fantasma daquilo que perde: os rituais, a vida distinta, os mimos e mesuras dos subordinados, o conforto do palácio. Precisa se acostumar com os ruídos alheios e esquecer o som da própria voz. Há quem diga que sente certo alívio ao voltar ao anonimato e se libertar da agenda carregada, das liturgias cansativas, do excesso de exposição. Mas a ausência disso tudo pode se assemelhar a uma crise de abstinência, que termina por levar o ex-poderoso à busca inglória de um lugar ao sol semelhante ao que desfrutava nos dias de fausto.
Talvez para compensar tais dissabores, mas também para dignificar personagens que tiveram um papel na história, a República brasileira concede regalias vitalícias aos ex-presidentes: automóveis, funcionários e homenagens, além dos salários. Algo semelhante ocorre nos Estados Unidos. Uma vez presidente, sempre presidente.
Um fantasma mais assustador é saber o que fazer com as longas horas do dia, dar rumo à vida, retomar a atividade anterior ou iniciar novo percurso. O esforço para recuperar o que ficou para trás quase sempre é em vão. Muito tempo se passou, novos hábitos se cristalizaram, carreiras profissionais foram interrompidas. Aí mora o desejo de permanecer ativo na mesma área em que obteve fama e prestígio, falando e agindo como se ainda fosse o mandatário. É instigado a analisar falas e estilo de quem está no lugar que um dia foi seu. Chovem-lhe oportunidades para que atue como sombra ou alterego, alguém que pode ser conselheiro, ponderar, sugerir, auxiliar. Ex-presidentes costumam valer muito no mercado das palestras e conferências, por exemplo. Precisam se esforçar para não cair em tentação.
Nesse ponto, o ex-poderoso depara-se com seu pior pesadelo: o de sair perdendo ao ser comparado com o sucessor. As comparações são inevitáveis. Adversários e inimigos as incentivam, rasgam elogios ao rei posto para despertar o ciúme do rei morto e intrigar os dois.
Não é, portanto, acidental que o ex-presidente Lula esteja repetindo que “o sucesso da Dilma é o meu sucesso; seu fracasso é o meu fracasso”. Ele não pode correr o risco de ser visto como estando a ofuscar sua sucessora, nem deixar que sugiram que a nova presidente o supera em algum quesito. Tem razão em reclamar da malandragem de seus adversários, que depois de terem passado anos dizendo que ele dava continuidade ao governo FHC, agora não param de falar que a gestão Dilma – carne de sua carne – está rompendo com os oito anos da sua Presidência. Mas também é verdade que ele, ao fazer isso, procura se aproximar da imagem positiva que Dilma possa estar obtendo junto à opinião pública. Não se trata só de mágoa, há muito cálculo no gesto.
Amado e odiado indistintamente, o poder perturba, corrompe e alucina. Reprime, castiga e prejudica, mas também acalenta, protege e beneficia. Costuma ser utilizado para conservar e para transformar. É instrumento e objeto de desejo, encargo e meio de vida. Sua “face demoníaca” não perdoa os que com ela convivem, sejam eles presidentes da República, governadores de estado ou CEOs de uma multinacional. O poder sobe à cabeça, cega, embriaga. Pode ser letal. [Publicado no Caderno Aliás, O Estado de S. Paulo, 27/3/2011].
Um comentário:
Quanto ao lado da alucinação ou do entorpecimento... Acho que Chaplin imortalizou isso em O Grande Ditador...
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