sábado, 25 de outubro de 2008

A cidade e seu futuro


O prefeito de São Paulo a ser eleito em 2008 estará chamado, como o foram todos os seus antecessores, a governar uma cidade que é um enigma a ser decifrado e uma potência a ser controlada. Se desejar inscrever seu nome na história, terá de ir além de rotinas e procedimentos-padrão, ser mais que administrador, coordenar mais que comandar.

Trata-se de algo universal. Estima-se que mais de 50% da população mundial vivam em cidades. Elas crescem por toda parte, transbordam seus centros e espalham-se pelas periferias, desafiadoras. Impõem-se como arranjos implacáveis, que “civilizam” sem piedade, redefinem perfis e padrões, sufocam outros modos de ser. Todas as grandes decisões políticas e culturais são tomadas em cidades e estão nelas os principais núcleos geradores de vida moderna.

Vivemos sempre mais em cidades, mas elas são cada vez menos polis. Continuam a nos seduzir, mas não mais nos concedem um estilo de vida desejável. As cidades do nosso tempo estão se convertendo em amontoados de pessoas e não conseguem fornecer, a seus moradores, condições de usufruir as vantagens da aglomeração: o encontro, a diversidade, o aprendizado da diferença e do respeito pelo outro, a luta coletiva. Em muitos momentos, assemelham-se a praças de guerra, teatro de batalhas inglórias, de um corpo-a-corpo travado com armas que vão da faca e do revólver à agressão verbal, à chantagem emocional, à ausência de cortesia e delicadeza, à indiferença. Massas de excluídos, sem-teto e desempregados perambulam quase a esmo, em meio a “incluídos” fechados em si e carentes de uma idéia de futuro. São Paulo não é exceção.

São assombrosas as dificuldades para que se reformem as cidades. A política só se ocupa delas como objeto de gestão, não de convívio, mais como espaço de mercados e automóveis que de pessoas. O planejamento urbano já não dispõe de força persuasiva e legitimidade. Está sendo subvertido pela dinâmica do capitalismo global e boicotado pelos mercados. Os interesses digladiam sem projetos e consensos. As cidades parecem à deriva, como se não conseguissem ser alcançadas pela razão política democrática e republicana. Tornam-se alvo fácil da razão técnica exacerbada, de administradores focados em controle e na construção compulsiva de obras e factóides.

É verdade que novas modalidades de gestão despontam no horizonte, anunciando articulações de novo tipo entre técnica e política, decisão e participação, gestão e cidadania. É verdade, também, que a rotatividade política propicia a chegada de novas pessoas e idéias ao governo das cidades. Os próprios moradores movimentam-se sempre, ativando a reinvenção urbana. E as tecnologias da informação ajudam a impulsionar redes de comunicação e cooperação que se colam às utopias em gestação.

Não é suficiente.

Como tornar sustentáveis nossas cidades e impedir que suas toxinas prejudiquem seus habitantes? Que fazer para livrá-las da racionalidade instrumental do poder e da técnica e abri-las à sensibilidade política, ao prazer estético, ao calor humano da democracia? Neste mundo de mercados escancarados, interessa pouco a cidade competitiva e funcional, produtivista e repressiva. Para vivermos e convivermos com dignidade, precisamos de cidades agradáveis, capazes de expressar seus encantos, proteger e promover seus habitantes. Cidades seguras: não a cidade policiada, que veta a vida noturna ou o andar distraído, mas a cidade aberta, dialógica, de todos e para todos, que se auto-organiza.

São Paulo cresceu desordenadamente, com pressa errática. Foi sendo arrumada meio ao acaso, “planejada” a partir de óticas imperfeitas. Tornou-se uma cidade de bairros inventados, de avenidas para automóveis, de poucas praças, em que as antigas edificações são destruídas como coisas velhas, descaracterizadas ou largadas à especulação. Uma cidade de máquinas e negócios, mais que de pessoas, onde se circula e se caminha com dificuldade, respirando mal e sem tempo de olhar a paisagem ou os outros.

Mas é absurdo combater as cidades, desprezá-las ou fugir delas. São Paulo nos perturba e incomoda, mas também nos fornece condições para imaginar formas superiores de convivência e luta pela vida. Não deveríamos temê-la e sim aproveitá-la melhor. É insensato cogitar do recuo a comunidades ideais que negariam os males da modernização e realizariam o desejo de que se estabelecessem relações pessoais intensas, repletas de solidariedade, paz e harmonia.

A idéia de uma cidade sem problemas, conflitos e ruído social é uma ficção descolada da vida contemporânea. Paralisa, em vez de libertar. Cidades não são arranjos abstratos. Nascem do dia-a-dia coletivo, da história e da cultura enraizada, da surpresa e do inesperado, não do planejamento rígido, desejoso de substituir a face naturalmente tensa da cidade por uma harmonia de prancheta. Seu melhor motor é a democracia participativa organizada, impregnada de vida pública e diferenciação.

Quando olhamos São Paulo com atenção, descobrimos que por sob a feiúra se ocultam muitas belezas, por sob o caos há ordem, por sob a desorientação geral pulsam projetos de destino. Quando vamos além das aparências, vemos uma cidade de pessoas que constroem variadas formas de convivência e cultura, que lutam por uma vida melhor e querem governos melhores, capazes de escutá-las.

São Paulo é apenas aquilo que precisamos redescobrir a cada dia: uma cidade de carne e osso, verde e cimento, máquinas e pessoas, ordem e caos. E é nela como construção coletiva, com suas virtudes e contradições, que devemos pensar para agir. Se descobrirmos como politizá-la, organizá-la democraticamente, enchê-la de cidadania e cultura, se soubermos em suma urbanizá-la de modo pleno, teremos o futuro.

Que os eleitores e o próximo prefeito, ou prefeita, procurem assimilar essas expectativas. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/10/2008, p. A2]

2 comentários:

André Henrique disse...

Na última postagem que fiz no meu blog falei sobre escola pública, e sem querer ia colocando no título escola do futuro. Aqui o professor fala em cidade, cidade do futuro. Assim como em outros períodos da história sempre estamos pensando no futuro, em meio a paradigmas e acertos políticos, os atores sociais buscam delinear políticas para presente, olhando o passado e projetando o futuro. Mas nem sempre temos mais do mesmo. No Brasil, em diversos períodos da história, as políticas públicas foram delineadas de forma autoritária, via prussiana, abalando a sociedade civil e desorientando as possibilidades de participação.
Vivemos um tempo novo, uma sociedade mais sedimentada, agitada, sedenta por participação. Como em outros textos, o professor sempre coloca a razão instrumental como principal barreira para a democracia participativa. Eu concordo com a observação, pois as políticas empacotadas, vindas de gabinetes impessoais e ermos, são indiferentes as sensações do cidadão heterogêneo que abriga a difusa sociedade civil. As políticas públicas desenhadas pela razão instrumental não são fieis aos anseios do cidadão, são políticas frias, antipáticas ao meio, desbotadas – perdem-se na prática.
O debate que o professor proporcionou nesse texto, apesar de ter como objeto as cidades, a cidade de São Paulo, serve para ensejarmos essas reflexões em torno da participação ativa da sociedade civil. Eu falo muito nesse assunto, seja no blog ou em salas de aula, fica até cansativo para alguns, principalmente àqueles munidos da irracionalidade “pessoalizante” e ideológica. Mas se olharmos atentamente a história das políticas públicas do Brasil, veremos o autoritarismo disfarçado, tais políticas foram tuteladas pelo Estado grande e lerdo, animado por elites pouco criativas, fechadas e incompetentes.
Dessa vez temos que pensar o futuro baseados numa agenda participativa, os atores sociais estão ativos, talvez desconexos, mas em tempos de grandes redes de comunicação, a participação democrática e a vigilância social têm boas armas nas mãos.
No que tange as cidades, a corrida em volta do Pacaembu surtiu bons efeitos, o professor teve de bandeja na mão o ambiente mais propício para falar do assunto. Penso que as políticas de revitalização do centro é um caminho interessante, desde que não abuse do elitismo, populismo boçal e da impessoalidade burocrática, a participação popular é indispensável.
Iluminação, cultura e lazer rimam com vivacidade, traz o cidadão de volta para o centro, aquece o comércio etc. Casa abandonada deve virar ponto de convivência pacífica, local de lazer e arte, não cubículo de orgia, drogas e assentamento boçal. Dar vivacidade as cidades também é uma forma de combater o crime.

Blog do Marco Aurélio Nogueira disse...

Ótimo comentário, André! Está bem posicionado e explora alguns aspectos que, no texto, ficaram secundarizados.
As cidades somos nós, nossa força nossa voz!