Se a universidade não formasse para o mercado deixaria de cumprir parte de sua missão. Ou será que alguém imagina que um jovem dos dias de hoje pode entrar no mundo e se tornar independente sem pisar no chão do mercado? Se lhe virasse as costas, a universidade se desconectaria da vida.
Mas a universidade não pode formar somente para o mercado, nem principalmente para ele, sob pena de trair a si própria. Forma essencialmente para a vida, a cidade (a polis), a comunidade. Ao fazer isso, cumpre a função de preparar pessoas para conviver criticamente com o mercado, para entrar nele não com o intuito de estimulá-lo a ser sempre mais irresponsável ou de maximizá-lo em benefício próprio, mas para ajudar a submetê-lo a alguma regulação e impedi-lo de colonizar a sociedade.
Acontece que hoje o mercado é uma extraordinária base de hegemonia, o que significa que sua cultura tende a modelar comportamentos e consciências e a fornecer uma espécie de pauta para instituições, governos, grupos e indivíduos. Por ser assim, o mercado funciona efetivamente como uma fôrma para tudo, portanto também para a universidade. Ele invade o campus universitário de mil maneiras. Mostra-se na expansão do ensino particular em detrimento do ensino público e na fixação de parâmetros mais concorrenciais e produtivistas para a organização da vida acadêmica e a avaliação do mérito científico. Muita coisa na universidade vira então mercadoria e passa a ser calculada como mercadoria: aulas, pesquisas, relacionamentos, currículos. Todos – professores, funcionários, estudantes, dirigentes – são afetados por esse processo, que dissemina complicados traços de egoísmo, desarticulação e corporativismo.
A estrada não é, porém, de mão única. No fundo, a universidade está mais acossada que formatada pelo mercado. Não está ocupada nem sitiada por ele. Em decorrência, preserva importantes zonas de autonomia e reflexão em seu interior. E é quando seus integrantes ativam e expandem essas zonas – encontrando-se reflexivamente, desenvolvendo o pensamento crítico, buscando interpelar a sociedade real e ajudá-la a crescer – que a universidade diz a que veio. Seria trágico imaginar que professores e estudantes poderiam se deixar levar pela miséria ética e intelectual que deriva inevitavelmente de um mercado deixado a si próprio, descontrolado e irresponsável.
5 comentários:
Caro amigo Marco Aurélio,
Parabéns pelo blog! Leitura indispensável. Recomendei-o no meu blog, a partir da sua feliz idéia de publicar o belo texto de Marx sobre o amor. Também estou divulgando lá este seu lúcido artigo sobre universidade e mercado.
Um grande abraço,
Dênis de Moraes
"No fundo, a universidade está mais acossada que formatada pelo mercado. Não está ocupada nem sitiada por ele. Em decorrência, preserva importantes zonas de autonomia e reflexão em seu interior. E é quando seus integrantes ativam e expandem essas zonas – encontrando-se reflexivamente, desenvolvendo o pensamento crítico, buscando interpelar a sociedade real e ajudá-la a crescer – que a universidade diz a que veio."
Sempre imagino que, automaticamente, aqueles que estão na universidade são os responsáveis por ela. Mas não é assim que funciona na vida real, isto é, não devem ser os únicos ainda que devam ser os principais.
Você, claro, está certo: a universidade está acossada pelo mercado mas existe vida inteligente pulsando na universidade. Agora... não creio que dependa só dela expandir e clarear pra sociedade as ditas zonas de autonomia e reflexão.
O governo federal vem criando os mais diversos ministérios, sempre de acordo com o politicamente correto do momento: "ministério da pesca" ou ainda ministério dos negros e assemelhados ou coisas assim. Não vejo a criação de leis, seja qual for sua instância, que orientem ou “obriguem” as autarquias, estatais ou que outras empresas oficiais, a empregarem verbas nas universidades públicas ou mesmo nas particulares.
Vejo a proliferação de regulamentos, leis e outras tantas peças legislativas e administrativas favorecendo a criação de ONGs, por exemplo, todas preocupadas com o povaréu, com a cultura e o pensar “brasileiros” e sempre brota a impressão de que nosso futuro profissional e cultural é nos transformarmos, todos nós brasileiros, em batuqueiros, artesãos, dançarinos ou bambas em rap.
Por que não vemos projetos conjuntos, dos ministérios da cultura e da educação?
Por que a Petrobrás investe em cinema e não na universidade brasileira? Ou, se existe isso, por não é divulgado? Por que a “cultura” é considerada um bem de marketing institucional e a pesquisa científica não é?
Agora, o que fazem os componentes da universidade brasileira (digo, estudantes, professores, funcionários, seguranças, etc.) pra expor e articular sua ligação com a sociedade? Não enxergo nenhum esforço ou realização concreta.
Outra coisa. Que tipo de estudante a universidade brasileira está formando, hoje em dia? “Acho” que já ultrapassamos, felizmente, aquela fase - anos 70 e 80, mais ou menos - em que éramos da USP, da PUC ou Mackenzie ou então... trastes intelectuais produzidos nas "particulares". Mas o estudante formado hoje em dia, seja lá qual for sua universidade de origem, não parece "carregá-la" quando se dirige pro mercado.
Voltando, concordo que a universidade "está mais acossada que formatada pelo mercado". Mas, pergunto: nossa visão, isto é, a visão que os cidadãos comuns têm da universidade, não estará, de fato, formatada pelo mercado?
Tenho acompanhado com inexplicável e ligeiro interesse a telenovela da rede Globo, a do horário dito nobre da tv. Não lembro de ter visto, e assisti muitas, telenovelas abordando o "universo" representado por uma universidade "particular" (outro conceito interessante, afinal: mesmo de caráter privado, uma universidade não tem, necessariamente, sempre um caráter público? gostaria de ler sobre isso, entender melhor). É uma universidade “modelar”, voltada pras questões sociais, pra “comunidade”, com projetos de “inclusão social” e tudo o mais – como se diz, hoje em dia, “da hora”. Os personagens são fascinantes. A "dona" da universidade é uma espécie de megera que no fundo tem bom coração; uma fauna de professores, não são muitos, cada um representando um tipo diferente, cada qual uma caricatura exagerada: o fofoqueiro, o honesto e ético, a invejosa e carente emocional, o “bundão” e assim por diante. Há estudantes de todo tipo: os pobres, que acabaram de passar num “provão”; o “radical”, a “quase idosa”, e todos os etcéteras possíveis. Ah, tem o reitor, sim, uma mistura de ex-militante esquerdista dos bons tempos ditos "de chumbo" com metrossexual e que, também no fundo, tem bom coração além de “sólida formação intelectual” – só pra usar uma frase muito comum nos anúncios de empregos.
Será que não é natural que os autores da telenovela apresentem a universidade assim, tão caricatural e inverossímil? Afinal, volto a perguntar, não é responsabilidade da própria academia apresentar-se à sociedade e dizer o que faz ou quer fazer? Isto é, apresentar-se como instituição autônoma, atuante, atenta e com respostas concretas às demandas e aflições sociais desta coisa que é o Brasil?
Desculpe o discurso, Marco. Acho que me perdi um pouco. Fui lá, voltei, circulei por não sei onde e não sei ao certo como fechar o assunto. Talvez seja normal, estamos numa tremenda geléia geral. Obrigado pelo espaço.
Grande abraço.
Sizenando
(em tempo: obrigado por visitar o meu blog e aviso que tomei a liberdade de incluir sua página entre meus links favoritos)
Sizenando:
estamos afinados. Tuas observações são ótimas, e vão na mesma direção das minhas. O que eu quis dizer foi precisamente que "é responsabilidade da própria academia apresentar-se à sociedade e dizer o que faz ou quer fazer", "apresentar-se como instituição autônoma, atuante, atenta e com respostas concretas às demandas e aflições sociais desta coisa que é o Brasil". Abraço, M.A.
Grande Dênis:
valeu pelo retorno e pela "canja" de me recomendar no teu ótimo blog, que visito sempre e recomendo com prazer.
Usemos e abusemos!
Marco
blogdoandrehenrique.blogspot.com
Estudando na Unesp, estou procurando absorver o máximo de conhecimento sobre como funciona a engrenagem administrativa-burocrática da universidade. Surpreendo-me com as certezas exaladas por parte de meus colegas nas discussões sobre tal engrenagem. Talvez seja por isso que ocorra tanto descrédito das falas dos alunos, tanto na universidade, quanto na sociedade. Discursos vazios, bravatas jogadas ao vento, salve as exceções. Não são dúvidas, erros como meio, tendo como fim o avanço da sapiência. Pelo contrário, são certezas, muitas vezes corporativistas, o que é pior.
É tão complexo o funcionamento de uma universidade, enfim, a sociedade é tão complexa, que desbota qualquer esperança no funcionamento do atual modelo de gestão da universidade.
Sobre a questão de aproximação da universidade com a sociedade, certo dia conversando com o professor Dagoberto, ele me falava sobre isso. A sociedade mudou(óbvio, não para todos, infelizmente), a universidade deve mudar com ela, se adequar a mesma ou pensar em como fazê-lo. Projetos de extensão seria um caminho? É a universidade demonstrando interesse pelos dilemas da comunidade. Satisfação pública dos gastos. Até quando vamos ficar nos escondendo por trás do manto da autonomia?
Enfim, posso estar equivocado, a mim falta experiência, mas procuro me arriscar e me expor. Propondo-me ao erro, aprendo.
Coloquei mais perguntas do que afirmações. Termino meu comentário com uma pergunta aos senhores, principalmente ao professor Nogueira: O que a universidade deve fazer para se aproximar da sociedade?
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