Instigado por uma postagem que
meu amigo Marcos Costa Lima, competentíssimo cientista político e professor da
UFPE, estampou em seu mural do Facebook, tive a oportunidade de pensar melhor
sobre o Relatório do Desenvolvimento Humano 2014, recentemente divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (Pnud). O relatório se chama Sustentar o Progresso Humano: Reduzir as Vulnerabilidades e Reforçar a
Resiliência (leia a íntegra aqui) e mostra, de forma enfática, através do Índice de Pobreza
Multidimensional (IPM), que entre 2006 e 2012 a fatia da população brasileira próxima à
pobreza multidimensional caiu de 11,2% para 7,4%. A proporção de pessoas em
situação de pobreza multidimensional severa passou de 0,7% para 0,5% na mesma
comparação.
São indicadores muito
animadores, que revelam o acerto e o resultado efetivo de algumas das políticas de transferência de
renda e incentivo ao consumo postas em prática pelos governos do PT. A redução da pobreza multidimensional – quer dizer,
daquela que se afere para além da renda e considera outras dimensões da
existência – foi de 22,5% em seis anos, o
que faz do caso brasileiro um exemplo de como boas medidas na área de
desenvolvimento humano, como com o Bolsa Família, podem de fato produzir
efeitos positivos.
Marcos Costa Lima fez a
postagem chamando atenção para o descaso com que a mídia tratou o fato. Para
ele, ao não divulgar com o destaque devido os números positivos do Pnud, a
mídia escondeu da população alguns dados importantes, que, caso fossem
divulgados, poderiam interferir no julgamento que os brasileiros fazem do
governo Dilma. Para Costa Lima, isso teria acontecido porque a grande mídia “está
hoje contaminada com uma propaganda sistematicamente antigoverno Dilma”.
Não serei eu a defender a
grande mídia, que faz marcação cerrada sobre os governos progressistas há muito
tempo. Nenhum grande jornal é santo. (Aliás, suspeito que santos ou gente “neutra”
não existem.) Basta haver algum sinal que aponte para o progresso social
substantivo ou a radicalização da democracia, venha ele de que governo for, que um editorial ou uma manchete
desfavorável aparecerão.
Há, porém, alguns atenuantes. Aquilo
que a grande mídia faz ou deixa de fazer interfere pouco no comportamento dos
eleitores: serve mais como combustível para ativistas e coordenadores de
campanha. Ela manipula, distorce alguns fatos (agindo como uma “parte política”,
como se fosse um partido), mas não faz a cabeça das pessoas, sobretudo hoje, em
que as pessoas são elas próprias midiáticas. As ações e falas da grande mídia
pesam menos, por exemplo, do que a palavra do padre, do pastor, do presidente, do prefeito e
do governador. Ou de ex-presidentes, que jamais saem de cena no Brasil. Nem
tudo, evidentemente, são redes e internet. O mundo é maior que a web. Mas não a
grande mídia. Aliás, o mundo também é bem maior do que a grande mídia e os
cidadãos brasileiros são bem mais inteligentes e sagazes do que os editoriais do
Jornal Nacional.
Marcos Costa Lima tem,
portanto, razão em sua denúncia.
Na conversa que mantive com ele
no Facebook, no entanto, ponderei que também seria preciso considerar que a mídia
não divulgou adequadamente o relatório porque a correta interpretação de seus dados
exige uma sofisticação técnica que não se encontra fácil por aí e é atributo mais
de cientistas sociais do que propriamente de jornalistas. Há um viés político
no silêncio, com certeza, mas há também uma deficiência intelectual.
Se o problema fosse somente a ampla
divulgação dos números positivos do relatório, a solução seria fácil: bastaria
as instituições governamentais acertarem seus mecanismos de comunicação, pois
elas têm um extraordinário poder de agenda e de divulgação num país como o
nosso.
No Brasil atual, há muita gente
(não é o caso evidentemente de Marcos Costa Lima) que reclama da postura da
mídia como se quisesse inocentar as instâncias que podem cumprir uma função
comunicativa essencial. Com isso, acaba por se fixar, no debate político, a
ideia de que os brasileiros não sabem das coisas porque a grande mídia não
deixa. Seria dela a “culpa” pelo fato de a sociedade não saber o que fazem os
governos progressistas. Por extensão, a mídia agiria para manter os brasileiros
na ignorância e cercar os governos progressistas para talvez sufocá-los ou deslegitimá-los.
A conversa com Costa Lima foi
muito boa, e só posso agradecer a ele por isso. O tema da “inclusão social” é
importante demais para que não o discutamos intensamente. O próprio conceito de
pobreza multidimensional é complexo: ver a pobreza para além da renda é algo
que passa por uma consideração correta e aprofundada das condições materiais e
sócioculturais de sobrevivência. Com ele, por exemplo, pode-se concluir que o
brasileiro é menos pobre multidimensional tanto porque algumas políticas
governamentais dão certo, quanto porque as comunidades dão melhor suporte às
famílias e conseguem assim compensar a pobreza de renda.
Mas é evidente que quando se
olham as coisas de uma perspectiva totalizante a realidade fica mais clara e precisa.
O Brasil é um caso de progresso social evidente, ainda que muito lento e
insuficiente. Não somente por causa da Bolsa Família, mas de uma série de
políticas que há décadas vem sendo tentadas no país, por governos de vários
tipos. O problema, creio, é que essas políticas são mal integradas, nem sempre
têm continuidade e por isso produzem resultados irregulares.
Dá para imaginar como estaria o
país se isso não ocorresse. A fragmentação política (das políticas, dos
governos, dos partidos, dos movimentos sociais) ajuda demais a fragmentar a
agenda democrático-social, enfraquecendo a explicitação, a organização e o
cumprimento dela.
Marcos Costa Lima observou, com
razão, que as políticas que há décadas vem sendo tentadas “foram tão pouco
efetivas para o enfrentamento dos problemas sociais que de fato podem ser
consideradas paliativas”. As coisas somente melhoraram de maneira mais incisiva
na última década, o que sugere, na minha opinião, duas coisas: (1) o foco dos
governos petistas foi bem definido e executado, tornando-se vitorioso daí para
frente; (2) o legado deixado pelos governos da Nova República e de FHC – redemocratização,
racionalidade econômica e estabilização da moeda –, ajudou a que se tornasse
possível, a partir de 2003, a inflexão social empreendida pelo governo Lula.
Mesmo que tenham sido paliativas, as medidas
adotadas produziram efeito positivo importante. O próprio Relatório 2014 do Pnud afirma,
por exemplo, que "de 1980 a 2013, o
IDH do Brasil foi o que mais cresceu entre os países da América Latina e do
Caribe, com alta acumulada de 36,4%, um crescimento médio anual de 0,95% no
período". Hoje, o país ocupa o 79º lugar entre 187 países, tendo avançado
uma posição em comparação com 2012. A melhoria, nas palavras do Pnud, confirmam
"uma trajetória de crescimento constante durante as últimas três décadas. As
evoluções das três dimensões do índice (vida longa e saudável, educação e
padrão de vida decente) mostram uma convergência rumo a uma maior harmonização
do desenvolvimento humano no Brasil, ao longo dos anos".
As políticas sociais tentadas
teriam produzido melhores resultados caso tivessem sido mais integradas, menos
fragmentadas, e tivessem na base um “acordo social” mais substantivo. Por isso
o progresso social foi evidente mas insuficiente e a agenda democrático-social
ficou suspensa no ar. Hoje, não parece que a disputa entre partidos como PT e
PSDB possa ter como efeito qualquer novo avanço nessa área. Batemos no teto, as
fórmulas se esgotaram. Avanços futuros mais expressivos dependerão de novos pactos,
de novos entendimentos e de novas coalizões, que superem o que tem vigorado até
hoje. Somente assim, além do mais, será possível obter alguma chance de
"pautar" democraticamente a grande mídia e bloquear o que há nela de
propaganda antiprogressista.
Somente assim, além do mais,
será possível obter alguma chance de "pautar" democraticamente a
grande mídia e bloquear o que há nela de propaganda contra o progresso social.
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