O sistema presidencialista de
governo caracteriza-se por centralizar a Presidência da República e depende
extraordinariamente da conduta presidencial. Se o presidente desempenha bem
suas funções, o sistema funciona. Se o faz com brilho pessoal, carisma e
qualidade política, melhor ainda.
No Brasil, cujo
presidencialismo é complicado por um federalismo imperfeito, isso é ainda mais
verdadeiro. Por aqui, presidentes fracos tendem a ser desastrosos. Não podendo
dispor de contrapartidas eficientes (um Legislativo de qualidade e uma
sociedade civil ativa), sobrecarregam o sistema e rebaixam o padrão da
governança, arrastando-o para a mesmice e a rotina.
Tudo isso é conhecido, mas deve
ser lembrado sempre que se constata alguma deficiência de desempenho no governo
federal ou algum atrito inconveniente entre os entes federados. A
responsabilidade, nesse caso, recai tanto sobre a sobre a conduta, o estilo, as
escolhas e a personalidade do presidente, quanto sobre os defeitos do
federalismo. Alcança, também, os governos regionais, onde o mesmo raciocínio
pode ser duplicado: quanto melhores os governadores em termos políticos e funcionais,
menos chances de o sistema fraquejar e mais chances de o federalismo se tornar “cooperativo”,
para usar a boa expressão empregada recentemente pelo governador mineiro
Antonio Anastasia.
Não é difícil constatar, por
exemplo, que o Brasil estava melhor quando Lula era presidente, se compararmos
as coisas no interior do ciclo petista de governo. Em suma, o país funcionava
melhor do que sob Dilma Rousseff. Em certos aspectos, a atual presidente vem
tentando “copiar” Lula, mas sem sucesso. É impossível fazer isso, dada a
envergadura do ex-presidente, seu prestígio internacional incomparável, sua
personalidade exuberante e carismática. Dilma é tecnicista, dura, não tem
empatia popular nem brilho e, acima de tudo, não se sente à vontade para animar
o presidencialismo com a vitamina mais importante: a política. Mostra-se
desconfortável seja para fazer a política miúda, das conversas e negociações de
bastidores, seja para fazer a grande política, dos gestos e propostas
abrangentes para o país. Além do mais, tem uma biografia pobre em termos de
imagem e impacto social.
É o oposto exato de Lula, que
imprimia ritmo e alma ao governo, deitava e rolava na política e do alto de sua
inigualável trajetória de vida manejava bem o presidencialismo federativo. Pode
não ter melhorado seu funcionamento ou reformulado o molejo institucional da
governança, mas valorizou a Presidência e coordenou o governo com bons
assessores e auxiliares. Era o grande articulador, quase onipresente. FHC
também foi assim. Mas Dilma não.
É verdade que os tempos são
outros, que a coalizão presidencial perdeu densidade, os partidos pioraram e a
sociedade ficou muito mais “fora de controle”. Dilma, porém, não teve um
“mensalão” a lhe ameaçar a jugular. A própria oposição tem sido dócil com ela,
mais por incompetência do que por opção. Seu maior desafio foram as ruas de
2013, fenômeno que, para um partido de esquerda como o PT, deveria ter sido combustível,
não problema. Mas Dilma não se saiu bem do confronto, independentemente do
perde-e-ganha dos índices de aprovação. Não foi à luta, propôs pouca coisa de
factível, não entabulou diálogos sustentáveis com os manifestantes e suas
agendas. Foi atrapalhada pelo sistema e pela mediocridade da classe política,
mas não mostrou habilidade para sair do cerco. Faltou-lhe virtù.
Pode-se argumentar que não há
tantas diferenças entre o governo Lula e o governo Dilma, que seriam carne da
mesma carne, e que Lula é o mais importante e ativo assessor de Dilma,
dividindo com ela algumas atribuições da Presidência, como, por exemplo, a da
comunicação e da articulação política, além de ser o principal agente da
reprodução do que há de dimensão simbólica no ciclo petista.
Isso, porém, somente serve para
reforçar a hipótese, agregando a ela um componente ameaçador: sem Lula, o
governo Dilma talvez já tivesse naufragado, por falta de quem o fizesse
respirar nos espaços vitais da política.
É evidente que há coisas boas
no governo Dilma. Só não o reconhece quem pensa com o fígado. Seu problema não
está no varejo, mas no conjunto da obra. Lula deixou uma marca. Outros
presidentes antes dele também o fizeram, a começar de Sarney com o Plano
Cruzado e a Constituinte. Com Dilma não, ela terminará seu período
governamental do mesmo modo como o começou.
Não se trata de engrossar as
fileiras do “volta, Lula”. O tempo de Lula talvez já tenha passado, não há como
simplesmente voltar a ele. Também não há como apostar que o eventual retorno do
ex-presidente traria consigo a imediata requalificação da Presidência e a
elevação da qualidade da governança. É impossível falar algo a esse respeito,
até porque política (e governo) é correlação de forças e circunstâncias, não
somente brilho pessoal ou capacidade de liderança.
Seja como for, 2014 será uma
excelente oportunidade para se por à prova esse raciocínio. Se, nele, as ruas
voltarem a se mobilizar, a pressionar e a incomodar, e fizerem isso com maior
envergadura política e perspectiva estatal, se os interesses organizados
tiverem força, criatividade e lucidez para rever suas formas de atuação e
qualificar as lutas sociais, se o debate político for depurado da baixaria e da
adjetivação, descortinar um futuro para o país e abrir espaços para a
cooperação inteligente dos partidos, então poderá se delinear uma situação na
qual os cidadãos mandarão no país, não os governantes e os políticos. O
presidencialismo e o federalismo poderão ser assim aperfeiçoados,
recondicionando o conjunto do sistema político.
Afinal, é com os cidadãos e as
forças vivas da sociedade que os políticos precisam pactuar, pois o Estado só
faz sentido se tiver na base um pacto social consistente. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/01/2014, p. A2]
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