quinta-feira, 27 de junho de 2013

A polissêmica voz das ruas





Pode haver dificuldade para que se compreenda o que anda a ocorrer nas cidades brasileiras desde o início de junho. Mas não faltam teorias, pesquisas e conceitos. O que falta é análise política, análise concreta da situação concreta: humildade, trabalho paciente, espírito indagador e disposição metodológica para articular a estrutura e a superestrutura, a sociedade e o Estado, os interesses, as classes, os valores, a correlação de forças, de modo a que se alcance uma visão de conjunto das molas que fazem com que as pessoas tomem partido e ajam, buscando captar ao mesmo tempo suas implicações e possíveis repercussões.
Isso acontece porque os teóricos sociais não são imediatamente analistas políticos e nem a academia é o locus mais adequado para que se façam análises políticas. Essas proliferam com mais facilidade na vida política organizada, onde a correlação de forças ganha materialidade e explicita sua lógica. Fora dela, preponderam boas intenções, poesia, abnegação e ética da convicção, uma racionalidade específica. Se faltam quadros intelectuais, espaços de reflexão e adensamento cultural para a democracia organizada, se os partidos deixaram de ser usinas de ideias e valores, então a análise política sofre para respirar, confundindo-se com a vocalização midiática de solidariedades, com o cálculo eleitoral ou com a crônica jornalística.
Daí a sensação de que os protestos não estão a ser compreendidos, a surpresa diante da rapidez com que eles se espalharam pelo país, causando arrepios e estupor nos políticos, júbilo e entusiasmo em muitas faixas da população. Daí o defensivismo conservador de tanta gente, movida ou pelo medo, ou por uma visão elitista da história.
A polissêmica e vibrante voz das ruas, que agora atingiu alto e bom som, tem a ver com a emergência de um novo modo de vida e o esgotamento de um modo de fazer política. Associa-se a uma percepção social de que a sociedade está excluída da arena pública, quer nela ser reconhecida e dela participar. Há muita luta por identidade e reconhecimento no momento atual, além de muito desejo de participação. E tem a ver, sobretudo, com uma correlação de forças que se sedimentou no país ao longo das últimas décadas, formatou um modelo de crescimento e de ascensão social, prometeu mundos e fundos, obteve algumas conquistas mas criou muitas ilusões e muita insegurança, jogando a sociedade numa armadilha, da qual ela agora mostra querer se libertar.
As vozes dos protestos são amplas, ligam-se por fios que vão da postulação de direitos à contestação da maneira como o país, os estados e os municípios vêm sendo governados. Escapam ruidosamente da polarização PT x PSDB, mostrando que ela não faz mais sentido. Veem nesses partidos os responsáveis principais pela consolidação de uma prática política que afastou a sociedade do Estado e se mostrou inoperante para renovar e requalificar a política, a democracia e a vida institucional.
São jovens na maioria da (“velha”) classe média porque são eles que têm mais informação, maior disponibilidade e mais energia contestadora. Até certo ponto, também são eles que têm mais a perder (ou menos a ganhar) com a reprodução do estado de coisas atual, que lhes cortou as perspectivas. Mas não são somente eles. Há jovens e não tão jovens que representam outros segmentos, há os que vão às ruas por solidariedade ou para demonstrar repulsa à violência, assim como há os que fazem isso por motivações eleitorais e os que vão para zoar, quebrar ou fazer festa. Todos de algum modo dizem: queremos um futuro, que vocês, políticos, empresários, partidos, estão nos impedindo de ter. Não estão totalmente errados.
As vozes são polissêmicas porque nelas cabe tudo. Não há tema ou problema que lhes passe despercebido. São assim porque os problemas sociais são enormes e porque o movimento que as embala não aceita hierarquias, comandos ou planejamento – não tem lideranças e nem dirigentes, ainda que esteja organizado e siga algum tipo de plano.
Nessa polissemia que se auto-organiza estão a beleza e a força dos protestos, aquilo que lhes dá impulso e oxigênio. É um avanço político extraordinário que as vozes das ruas estejam sendo ouvidas. Elas poderão ser a plataforma de lançamento de um novo ciclo democrático no país. O ruído, o atrito, o conflito, a contestação desempenham, assim, papel eminentemente de alerta, de advertência, que somente os pobres de espírito e inteligência poderão desprezar.
O recuo dos prefeitos e governadores no caso das tarifas prova ao mesmo tempo a força do movimento e o despreparo do sistema político. Pode ser um exagero dizer isso, mas tudo leva a crer que não se poderá mais governar como antes. O silêncio dos políticos é constrangedor. A arrogância das cúpulas e das elites – de direita, centro e esquerda – terá de arrefecer. Entramos em outra dimensão. O próprio movimento terá de se reposicionar, após as primeiras conquistas. Na medida em que vierem à tona os desdobramentos da contestação, formas mais organizadas haverão de surgir, sob pena dos protestos serem engolidos por outras dinâmicas. Uma agitação não constrói decisões: pede e exige, mas precisa de articuladores (políticos, partidos, gestores) para que se formate uma agenda. Para que reivindicações cheguem ao Estado, não bastam as redes sociais. Não se trata de lideranças, mas de instâncias que coordenem, processem e lancem pontes para o Estado.
Se o feiticeiro ativou forças com sua magia, não se deve deixar que ele perca o controle sobre elas. O pior que pode acontecer é o movimento desenhado nas ruas ser capturado pelo sistema, pelas “forças da reação” ou pela estupidez dos desmiolados.
As ruas não têm dono nem voz uníssona e uma hora ou outra baterão no teto. E quando isso acontecer, poderão se deixar arrastar pelo primeiro demagogo que souber seduzi-las. Populistas de plantão estão de olho nelas. Como sempre. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/06/2013, p. A2].

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