domingo, 28 de abril de 2013

Partidos para dar e vender


É compreensível, ainda que não cabalmente justificável, o alvoroço provocado pela aprovação na Câmara dos Deputados do projeto de lei que limita o acesso de novos partidos ao fundo partidário e ao tempo de propaganda na TV. Houve tanta falta de tato e habilidade que se abriu uma pequena crise política no país.
Sempre que se mexe com os partidos, tudo sai do lugar, a começar dos interesses e planos forjados nas instâncias políticas e governamentais. Como há um calendário eleitoral e o governo se atirou de corpo e alma na batalha pela aprovação do projeto, o ambiente político ficou nervoso.
A relação entre qualidade da representação, número de partidos e mecanismos de criação de novas siglas merece ser sempre bem analisada. As distintas situações nacionais concretas ensejam múltiplos sistemas partidários, seja no que diz respeito às suas regras, seja quanto à maior ou menor facilidade para que se criem partidos.
Não há de antemão um número ótimo de partidos e nem critérios pétreos que fundamentem uma regra para sua multiplicação. A questão de saber quantos partidos suporta uma boa representação democrática é retórica: não dá para ser respondida. Democracias de boa qualidade sobrevivem mesmo que tenham sistemas partidários fragmentados; basta que algumas grandes forças partidárias organizem a competição política.
Partidos surgem conforme cálculos e desejos que não estão em manuais. A busca de regulação do processo reflete o desejo das cúpulas de impedir que a representação se despedace e atrapalhe a governabilidade. Especialmente hoje, época de muitas postulações de identidade e múltiplas agendas, o pluralismo não cabe numa divisão simples entre direita, centro e esquerda, por exemplo. A imposição de camisas-de-força não funciona e pode até mesmo afastar do jogo político as minorias não partidarizadas e sem chances de criar seus partidos.
Isso também ocorre nos países em que as tradições históricas, a cultura política e o processo de organização do Estado estabeleceram regimes fortemente polarizados entre duas forças gigantes, como nos Estados Unidos (democratas vs. republicanos) e na Inglaterra (conservadores vs. trabalhistas). Neles, ou as minorias se compõem e se diluem nos grandes partidos, ou vegetam na margem do sistema, dele se excluindo. Seja como for, sistemas partidários desse tipo são produtos da realidade, não o resultado de imposições legais.
Exceção feita aos períodos ditatoriais, o Brasil sempre foi “multipartidário”, sempre conviveu com a proliferação de legendas e com a dança dos parlamentares entre elas. Criar novos partidos tem sido uma preferência nacional, um traço de nossa vida política. Seja para acomodar novos interesses, resolver pendências ou dar vazão a apetites eleitorais.
O problema se agravou a partir dos anos 1980, quando a sociedade ficou mais complexa e se desfez a unidade democrática contra a ditadura. Dezenas de siglas se esparramaram então pela vida política nacional, a maioria delas com existência fugaz e perfunctória. O mecanismo de criação de partidos ficou desregulado. Tornou-se mais fácil fundar uma legenda do que abrir uma conta bancária. Migrações sem critério entre os partidos tornaram-se usuais.
Fatores tópicos ajudaram a que isso acontecesse. Os partidos principais, PMDB, PT, PSDB, estruturadores do sistema, foram perdendo magnetismo e condicionando sua capacidade de atração ao uso dos recursos de poder, ampliados na medida em que conquistavam governos. Desfizeram-se as identidades tradicionais e o surgimento de novas identidades fez com que aumentasse o empenho por novos partidos. A dinâmica democrática geral foi-se mostrando mais forte do que os partidos e esses, ao chegarem aos governos, mal conseguem se distinguir uns dos outros, fato que passou a ser percebido pela opinião pública, contagiada ela própria por uma visão antipolítica que vitima antes de tudo os partidos e os parlamentares. Abandonados pelos cidadãos, os partidos foram se concentrando em seus próprios negócios internos, burocratizando-se. Parlamentares mais coerentes passaram a cogitar da criação de legendas mais “autênticas” para compensar a indigência partidária prevalecente. Ao mesmo tempo, políticos fisiológicos, sem espaços nos partidos existentes, sentiram-se incentivados a criar legendas à sua imagem e semelhança para assim construir bases com que viabilizar suas pretensões eleitorais. Por fim, a legislação eleitoral, ao vetar as candidaturas independentes, empurrou os políticos para a multiplicação artificial de legendas. Com a valorização do tempo de propaganda na TV e sua distribuição conforme a votação obtida, o círculo se fechou.
A discussão atual tem um quê de bizarrice. Caso um parlamentar abandone seu partido por outro, ele leva ou não consigo a representatividade obtida nas urnas? Seus votos lhe pertencem ou são do partido? A questão é bizarra, mas faz sentido: afeta diretamente os jogos de poder. Segundo as regras vigentes (que não autorizam os partidos a apresentarem listas fechadas aos eleitores), o mais lógico é que os votos fiquem com os parlamentares que os receberam. Mas os partidos os patrocinaram e podem arguir que também são donos dos votos.
O projeto aprovado na Câmara não proíbe a criação de partidos. Seus promotores alegaram que desejam impedir que se repitam artimanhas como a da criação do PSD, que nasceu rico graças ao “roubo” de deputados de várias siglas. Escolheram, no entanto, um péssimo momento para fazer isso. Deram a impressão de querer atrapalhar as propostas ora em gestação, mexendo nas regras com o jogo em curso. Ninguém foi excluído, mas a medida prejudica os que desejam crescer mediante a captura de descontentes e reduz o potencial imediato de qualquer nova sigla que venha a surgir. Tem cara de armação, mesmo que em médio e longo prazo sobrevivam todos os partidos, e mais alguns. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/04/2013, p. A2].

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