Num momento em que aumenta a perplexidade diante das cidades modernas e,
em São Paulo, cresce a discussão sobre habitação popular e mobilidade, vale a
pena retornar aos arquitetos e urbanistas que marcaram época com seu trabalho e
suas criações. João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) é certamente um deles.
Um dos mais importantes arquitetos brasileiros do século XX, Artigas
merece atenção técnica, política e cultural. Em 2015, diversas iniciativas
registrarão o centenário de seu nascimento, ajudando-nos a compreender o papel
emblemático que desempenhou entre nós.
Paranaense de Curitiba, Artigas formou-se na Escola Politécnica da USP
(1937) e radicou-se em São Paulo. Foi fundador (1948) e professor universitário
da FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, cujo prédio na Cidade
Universitária ele mesmo projetaria. A partir de então, desempenhou papel-chave
na prática e no ensino da arquitetura. No início dos anos 1960, coordenou a
reestruturação curricular do curso, contribuindo para fazer com que a
arquitetura brasileira passasse a considerar a generalidade dos problemas da
criatividade espacial numa sociedade que se urbanizava aceleradamente, trazendo
consigo a expansão imobiliária e o desafio da habitação popular. A reforma foi
implementada em 1962 mas terminou por ser paulatinamente desfigurada. O golpe
de 1964 caiu pesado sobre Artigas e a intelectualidade. Ele foi preso,
enfrentou um inquérito policial-militar, exilou-se por um tempo no Uruguai.
Voltou à FAU em 1965, mas pouco depois, em 1969, foi cassado e afastado
compulsoriamente da USP, junto com vários outros colegas.
Artigas era comunista assumido, condição que naquela época servia de
pretexto para tudo.
Somente reassumiu suas aulas na FAU em 1980, com a anistia. Ao retornar,
o ambiente era outro, ele parecia um estranho no ninho, foi considerado sem um
currículo acadêmico compatível com sua condição formal anterior. Por quatro
anos, amargou a condição de auxiliar de ensino e a protelação injustificada de
sua demanda pela abertura de um concurso que lhe devolvesse a cátedra que lhe
tinha sido usurpada. O clima ideológico que se seguiu a 64 combinou-se com a
escalada da burocratização nos ambientes acadêmicos, que teimaram em negar a
Artigas o reconhecimento que já havia obtido ao longo de sua trajetória
profissional e intelectual. Em junho de 1984, finalmente, realizou as provas do
concurso para professor titular do Departamento de Projetos.
Artigas desenvolveu intenso trabalho arquitetônico entre 1940 e 1980.
Entre as centenas de projetos e grandes obras, destacam-se o Estádio do Morumbi
(1953), as estações rodoviárias de Londrina (PR, 1950) e Jaú (SP, 1970), o
Anhembi Tênis Clube (1961), o Edifício Louveira no bairro de Higienópolis em
São Paulo (1946), residências particulares, escolas e centros sindicais. Em
1968, juntamente com os arquitetos Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado,
concebeu e supervisionou a construção do Conjunto Habitacional Zezinho
Magalhães Prado (Parque Cecap), um dos marcos da política habitacional e das
relações entre arquitetura e poder público. A Union Internationale des
Architectes (UIA) lhe atribuiu os prêmios Jean Tschumi, 1972, por sua
contribuição ao ensino de arquitetura, e Auguste Perret, 1985, pelas pesquisas
de tecnologia aplicada à arquitetura.
Sua opera magna, o prédio da FAU (1961), se destaca como
materialização arquitetônica de um conceito de escola. O prédio não tem portas
e se espalha sob uma cobertura única, como que para indicar que o aprendizado é
um processo aberto e criativo, onde todos ensinam e aprendem, uma praça
pública, uma ágora, um espaço democrático, urbano e político, maior e mais
importante do que o recinto fechado de uma sala de aula.
Artigas sempre se debateu com uma espécie de abismo que se abria entre a
função do arquiteto e sua capacidade real de questionar a estrutura capitalista
de desigualdades e tensões. Sua militância ardorosa e polêmica foi em boa
medida o reflexo disto. Sentiu na pele as contradições e os choques técnicos,
formais, políticos e ideológicos que emergiam de uma sociedade que se
modernizava sem deixar de ser “subdesenvolvida”. Para ele, o arquiteto não era
um prisioneiro de suas circunstâncias e podia se erguer mais alto, valendo-se
da capacidade de “elaborar propostas de futuro em termos utópicos” e de “pôr a
imaginação a serviço da felicidade humana”.
Apostou enfaticamente na dimensão civilizatória da industrialização, a
partir da qual seria possível “fazer casa para todos” mediante, por exemplo, a
disseminação de componentes pré-fabricados. Não se cansou de denunciar as
misérias da especulação imobiliária e da dinâmica mercadológica que plasmava e
elitizava tudo. Foi um doublé de técnico e artista humanista: apaixonado, indignado
com as injustiças do mundo, zeloso do “direito de manter suas utopias”.
Um modernista recomposto em tom nacional-popular. Jamais abriu mão da
concepção da arquitetura como “uma espécie de direito à beleza”, uma atividade
que deveria ter uma poesia no centro: que dignifica a pessoa e o cidadão, trata
todos como iguais, se desdobrando numa cidade pensada como polis.
Vilanova Artigas morreu angustiado com o legado dramático do
aggionarmento capitalista e do golpe de 1964, que “nos entregaram um país onde
os problemas sociais que o arquiteto teria de assimilar, em face, digamos, da
cidade de São Paulo, são de tal ordem que apavoram qualquer cidadão”.
A arquitetura e o urbanismo tinham uma dura e nobre missão a cumprir,
que ele definiu de maneira pungente: “A felicidade de um povo se mede pela
beleza de sua cidade”. Ao nos lembrar disso agora, seu legado mostra-se com o
viço da juventude. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/2/2015, p. A2].