Exceção feita às eleições municipais, cuja importância foi enorme, o ano político de 2012 termina sob o signo da corrupção e da busca de justiça e de equilíbrio entre os poderes da República.De Carlos Cachoeira a Rosemary Noronha, passando pelo julgamento do mensalão e chegando às denúncias de Marcos Valério, tivemos um eixo. Uma nova fase pareceu despontar na vida nacional. O protagonismo e o prestígio de que o STF passou a desfrutar emergem como fato novo, que ainda terá de ser bem compreendido, até para se ver em que medida implica o rebaixamento dos outros poderes.O fio que liga os crimes – de uma forma ou de outra associados a formação de quadrilha, tráfico de influência, corrupção ativa e peculato – é o mesmo que une negócios e política, ou seja, que mostra a invasão da política pelo mercado e pelo dinheiro. Seu ponto de partida, no Brasil recente, desponta na votação da emenda da reeleição de FHC e nas privatizações dos anos 90 e encorpa com o caso Waldomiro Diniz (março de 2004), assessor da Casa Civil da Presidência flagrado recebendo propina. Passa pelo mensalão, pelas denúncias de compra de dossiês falsos contra políticos, pelas relações de Cachoeira com políticos de vários partidos e culmina no caso Rose. Fica dramaticamente reforçado com as declarações de Valério comprometendo Lula no mensalão.É inevitável que bombas desse tipo estourem no colo do PT. O partido tornou-se a bola da vez, o adversário a ser batido. Cresceu, paradoxalmente, durante os anos em que mais se sabe de casos de corrupção. Elegeu e reelegeu Lula, elegeu Dilma, ganhou eleições em estados e municípios antes inacessíveis, tornou-se uma potência política, caminhando como se nada o atingisse ou prejudicasse. Suas cúpulas insistem em associar as denúncias de corrupção a um plano sórdido da direita, da mídia e da “Justiça conservadora” para desconstruir o PT, desestabilizar seus governos e ocultar suas conquistas. Não percebem que o argumento é ruim, insistem em não reconhecer erros e escolhas equivocadas, prolongando a percepção de que o partido naturaliza a corrupção.O poder é, em si mesmo, possibilidade e armadilha. Concede aos que dele se aproximam múltiplas vantagens, mas também abre as portas para a tentação, os falsos amigos, as negociatas. Os poderosos muitas vezes se embriagam com os trunfos de que passam a dispor: nomear, indicar, pedir e decidir tornam-se verbos que se confundem no seu léxico e que os fazem, com frequência, meter os pés pelas mãos.O poder não é imune ao tempo. Tende a se desgastar com o andar do relógio. O poderoso se entedia e passa a ser atraído ou pela inércia ou pela disposição ao risco. O tempo do poder também acompanha o tempo social, precisa decifrá-lo e se ajustar a ele. Hoje, nesse tempo de redes, conectividade, informações livres e reflexividade em que vivemos, o poder não consegue mais fazer o que fazia antes. O sistema político-administrativo copia a estrutura em rede da vida, vendo crescer focos de competição dispostos horizontalmente. O poder precisa negociar, ouvir e dialogar mais, lidar com obstáculos e desafios constantes. Está mais exposto, tem menos aura e opera muitas vezes rés ao chão, enfiando-se em arapucas “mequetrefes”. Pode cair em descontrole agudo.Controles rigorosos não combinam com redes e conectividade. Nomear um assessor pode ser o primeiro passo para o inferno: subordinados tendem a se tornar pequenos reis e rainhas de pequenos feudos, nichos de onde operam e corrompem. O caso Rose é emblemático. Beneficiada pelo vínculo pessoal que manteve por anos com Lula e outros poderosos, ela viabilizou um esquema nas barbas do poder. O esquema ganhou vida própria, envolvendo os que o patrocinaram e dele se beneficiaram.Não se trata de relativizar nem muito menos de diminuir a responsabilidade dos dirigentes. Ninguém chega ao comando de um escritório regional da Presidência sem o devido apoio superior. Mas é preciso dar a cada um a sua parcela de culpa. Não é plausível analiticamente (embora funcione como agitação) que se estabeleçam a priori linhas de comando trabalhando em prol da corrupção, como se determinados partidos ou políticos fossem especializados na prática de crimes. Há mais afã desbragado pelo aproveitamento das oportunidades de poder e muito mais aparelhamento de agências e órgãos estatais – um aparelhamento que, à diferença do tradicional, pode até mesmo receber verniz ideológico, “anticapitalista”. Cada época tem seu tipo particular de corrupto, e o de hoje parece ser o “facilitador”.Nas décadas recentes, muitas pessoas desejosas de ascensão social, emprego e prestígio foram projetadas em postos-chave do Estado, enredando-se em esquemas e maracutaias. Seus padrinhos conhecem as regras do jogo, não podem ser isentados de culpa. Não há mais “idealistas” no âmbito público e estatal. Também não há como contar com os mecanismos de controle da burocracia, cujas normas e cujo ethos jamais prevaleceram impávidos entre nós. Com isso, as oportunidades de aparelhamento aumentaram sensivelmente. As correias de transmissão entre Estado, partidos e particulares ficaram descontroladas.Precisaremos de tempo e determinação para que os atores entendam a nova estrutura da vida e domem os sistemas. Mas quanto antes começarmos a nos mexer em sentido reformador, melhor. Muito pode ser feito a partir da organização da indignação e dos desejos de se ter um país mais decente. Se aqueles que se mostram aguerridos no combate aos escândalos de hoje capricharem na mira, poderão funcionar como um polo de ativismo ético-político que ajudará a que se processem os escândalos que ainda virão, reduzindo paulatinamente sua potência.Bom 2013 para todos. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/12/2012, p. A2].
Porque a política democrática administra o presente mas retira sua poesia da construção consciente do futuro.
domingo, 23 de dezembro de 2012
Tempos de justiça e corrupção
sexta-feira, 7 de dezembro de 2012
Niemeyer, o comunismo e a arquitetura
Desenho de Oscar Niemeyer |
Oscar
Niemeyer foi um grande arquiteto. Fiel à essência da arquitetura, foi também um
humanista e um intelectual permanentemente atento à vida e às condições dos
setores mais pobres e excluídos. Comunista, militante do PCB, foi uma pessoa
grandiosa. Cultuou o moderno sem se descolar das raízes nacionais, emprestando
à arquitetura uma irreverência que ganhou mundo.
Seu
grande legado foi a arquitetura. O que ele fez com sua criatividade, com sua prancheta, projetou a arquitetura brasileira no mundo. Ajudou a embelezar a vida e as
cidades. Junto com outros gênios como Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha,
que seguiram trajetórias parecidas, ajudou a consolidar a arquitetura como uma
arte e uma técnica a serviço do homem.
Sua
morte em dezembro de 2012, aos 104, anos enseja muitas reflexões.
Como
costuma fazer habitualmente, Reinaldo Azevedo foi contra a corrente e desancou
Oscar Niemeyer em seu blog, reproduzindo artigo que escreveu quando o arquiteto
fez 99 anos. Antes da republicação, fez um comentário eloquente: "Morreu o arquiteto Oscar Niemeyer, aos 104 anos. Pensava e
escrevia coisas detestáveis. Dele se pode dizer o que disse Millôr Fernandes
sobre um colega seu de Pasquim: “Metade é gênio, e metade é idiota”.
Muita
gente concorda com isso e várias pessoas manifestaram-se em tons
parecidos com o de Azevedo. Acham que Niemeyer precisa ser criticado porque era comunista
dos brabos, ou pelo menos deveriam todos se lembrar disso para "colocá-lo
em seu devido lugar". Se o cara pensava mal, parte de sua obra deve ter
sido contaminada, parecem querer dizer, e alguns dizem mesmo.
Os
anticomunistas militantes, o pessoal mais à direita, que gosta de se apresentar
como "conservador", formam a parte mais ativa dessa linha de
avaliação. Invariavelmente, baixam o nível, pois sua forma de fazer crítica
política, estética ou ideológica jamais faz concessões ao bom gosto, à educação
ou ao refinamento. Outros, mais liberais, criticam o stalinismo de Niemeyer,
que o teria feito tomar posições equivocadas e falar besteira demais, ainda que
isso não sirva para desmerecer sua obra. Entre uns e outros, flutua Reinando
Azevedo: "A estupidez política de Niemeyer, que defendia regimes
homicidas, não condena a sua obra. Mas a sua obra também não absolve a sua
estupidez política".
É
uma discussão antiga e interminável essa. Cultura e política. Poderia um
reacionário escrever coisas da perspectiva generosa do homem, algo libertário
ou que mostrasse a verdadeira face da vida? Alguns filósofos marxistas, como
Lukács, responderam firmemente que sim, chamando isso de "vitória do realismo".
Os
que criticam o comunismo de Niemeyer deveriam proceder do mesmo jeito quando
analisassem sua obra de arquiteto.
Da
minha parte, mantenho tranquilamente a opinião de que Niemeyer teve
extraordinária importância na cultura brasileira e na arquitetura mundial. Mas
gostaria de acrescentar o seguinte.
Oscar
era mesmo meio stalinista. Um homem do seu tempo, que abraçou o comunismo como
um credo e o praticou de forma inflexível, agarrado às suas convicções e sem
arredar pé um centímetro delas. Foi pouco dialético, pouco arejado. Não o
conheci pessoalmente, mas acompanhei suas relações com o PCB durante os anos em
que atuei no partido e mesmo depois. Oscar jamais foi um renovador no âmbito partidário
ou do marxismo, nunca aceitou a ideia de democracia como valor universal,
sempre pensou que a revolução viria por uma explosão dos indignados e famélicos
do mundo. Acho que não entendeu as transformações que ocorreram no capitalismo
e no mundo moderno. Poderia ser criticado por isso, se fosse o caso.
Mas
não é o caso, pois Oscar jamais foi um político e muito menos um formulador
político. Tomou posições políticas muitas vezes de forma ingênua, passional,
fiel a suas convicções ou obediente às diretrizes partidárias. Não deveria,
portanto, ser criticado naquilo que julgam ser seu "pensamento
político", que nunca foi por ele formulado, explicitado ou esclarecido.
Ele atuou, digamos assim, como um pensador passivo, um repetidor. Na
arquitetura, porém, foi um criador, e aí está o seu legado.
É
isso, simples assim. Fazer um auê a esse respeito agora que o cara morreu é tão
primitivo e equivocado quando acender velas para ele e tratá-lo como um santo
ou alguém a ser canonizado. E não ajuda em nada a que se compreenda melhor seu
papel e especialmente o significado de sua arquitetura.
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