sábado, 28 de janeiro de 2012

Crônica de uma guerra anunciada

O que era para ser festa pelos 458 anos de São Paulo virou vergonha, preocupação e convite à reflexão.
O estopim foi aceso no domingo, 22, ao raiar da madrugada, quando a Polícia Militar paulista removeu à força os moradores de um terreno vazio do município de São José dos Campos, o Pinheirinho, pertencente à massa falida do investidor Naji Nahas. Cerca de 6 mil pessoas viviam na área de 1,3 milhão de metros quadrados.
A operação tinha o respaldo de uma decisão judicial estadual, contestada por setores da Justiça Federal.
Decisão judicial emanada, a PM foi a campo. O ambiente era de conflito, pois os ocupantes organizaram-se para resistir. E o que era para ser mero ato jurídico converteu-se numa batalha campal. Os militares expulsaram as pessoas de seus barracos, que foram sucessivamente destruídos por tratores. O confronto foi inevitável. Carros queimados, feridos, dezenas de presos, choques e pancadaria, cenas que se repetiriam nos dias seguintes. Tudo em doses desproporcionais ao que se tinha de fato no Pinheirinho: 1.500 famílias convencidas de que seria possível ter ali um canto para viver. Não havia exércitos inimigos nem “classes perigosas”, mas uma guerra terminou por eclodir.
A ocupação do Pinheirinho ocorreu em 2004. O acampamento proliferou. Converteu o terreno num bairro, com comércio e igrejas. Deu perspectivas de vida e moradia a milhares de pessoas. Ao longo do tempo, suas lideranças procuraram negociar a desapropriação pública do terreno e a atenção dos poderes municipais. Talvez não tenham tido a habilidade necessária, talvez não tenha sabido buscar os apoios e os meios necessários, certamente encontraram resistência, protelação e má vontade. Nos últimos tempos, era clara a vontade de se ter uma saída negociada. A solução, porém, foi sendo postergada pelo poder municipal, desprovido de inteligência e de política urbana. Município, Estado e União assistiram ao crescimento do bairro e nada fizeram para gerenciar o que ali estava se gestando. Tiveram 8 anos para isso. Aí, de repente, na calada da noite, decide-se remover à força os ocupantes. Insensatez.
É fácil criticar a PM, mas a ação foi estatal, autorizada. Teria agido a PM à revelia do governador ou a principal autoridade paulista não teve como escapar do fato de que “decisão da Justiça não se discute, cumpre-se”? Tão correta quanto esta máxima, é a consideração do modo como uma decisão deve ser cumprida, a avaliação de suas consequências. Não era evidente que a remoção levaria a choques e confrontos? Que milhares de pessoas seriam prejudicadas? Sabia-se disso tudo porque tudo era de conhecimento público. Processos de desocupação à força ferem direitos, produzem vítimas e criam muito mais problemas que soluções.
Apesar disso, não houve uma voz que ponderasse e suspendesse a operação. Que freasse o massacre que se anunciava. A falta de flexibilidade horroriza porque, no dia anterior, o Tribunal Regional Federal interrompera a reintegração de posse e também porque, uma semana atrás, estava bem avançado um acordo entre as partes envolvidas. Faltou política com P maiúsculo. Não apareceu ninguém – partidos políticos, lideranças democráticas, poderes públicos – para facilitar o encontro de uma solução negociada. Somente as lideranças do Pinheirinho mobilizaram-se, com a ajuda efêmera de alguns ativistas. Deu no que deu.
A repercussão foi imediata. As redes ferveram. A mídia repercutiu os acontecimentos. A OAB classificou como ilegal a reintegração de posse, realizada apesar de ordem da Justiça Federal mandando suspender a ação. Exacerbou-se o conflito de competências federativas. O governador de São Paulo prometeu verificar se houve abusos na operação. Da sociedade civil e de Brasília choveram críticas a ele e ao PSDB. Houve manifestações. A questão se politizou. O que era para ser ato pontual converteu-se em tema nacional, eleitoral, alimentado por uma tragédia social.
Por trás dele, um mar de dúvidas e perplexidades. Por que beneficiar proprietários em detrimento de moradores pobres? Não seria por um desejo não revelado de especulação imobiliária, por acertos espúrios entre alguns “anéis burocráticos”? Por que nada se fez pelo Pinheirinho no correr dos últimos anos, tempo em que os gestores públicos assistiram impassíveis à consolidação do bairro? Uma nódoa manchou os governos estadual e municipal, e o PSDB por implicação. Será difícil apagá-la. Ela respingou no sistema político como um todo, chegou a Brasília, ao Ministério das Cidades e não só a ele. Sempre é fácil apelar para o pacto federativo quando se trata de justificar a ausência de políticas e o abandono dos mais fracos. Também é fácil falar em soluções ex-post facto.
A falta de ação política positiva, capaz de gerar consensos e soluções, ficou evidente no Pinheirinho. Mas está em toda parte. Os ambientes atuais estão congestionados de posições referenciadas por princípios que não se compõem com facilidade: o desejo de justiça, igualdade e liberdade versus a exigência de controle. É uma polarização que só tem feito se agravar. Aparece no modo como se pensa e se pratica a política hoje, na tensão despropositada entre representação e participação. Mostra-se na face autoritária e no particularismo dos governos, sempre prontos a defender os mais fortes.
Será preciso esforço, ideias e tempo para que amadureçam soluções democráticas consistentes para os problemas que estão a emergir da revolução atual, que está revirando os fundamentos do viver coletivo, e desta crise orgânica que está fazendo com que o capitalismo aprofunde suas imperfeições, desorganize os sistemas de produção e distribuição, as formas de vida, as identidades e os modelos políticos, complicando e problematizando as capacidades coletivas de reação e emancipação. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/01/2012, p. A2].

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A violência no Pinheirinho e os excessos do maniqueísmo

Foto de Nilton Cardim -SigmaPress AE
É por isso que gosto tanto das redes sociais mas não as considero revolucionárias, nem capazes de fazer revoluções. Nelas é difícil até mesmo expor opiniões abrangentes ou defendê-las com alguma serenidade. Postei ontem no Facebook uma pequena análise dos fatos do Pinheirinho. Como se diz na gíria atual, o post está bombando.

No entanto, refletindo bem a cultura das redes, cada um lê as coisas como quer e expõe seu pensamento como quer, com o fígado ou com o cérebro, ou mesmo com os dois. Nada a objetar, é parte do jogo. 

As críticas mais viscerais, agressivas e desqualificadoras me fortalecem, seria possível dizer, mas também dão a sensação chata de perda de tempo, murros em ponta de faca. 

Outras me ajudam a pensar, mesmo quando não levam bem em conta o que escrevi. Os que acreditam que sou tucano ou que defendo o PSDB, por exemplo, acham que isentei o governo estadual e o PSDB de críticas e responsabilidades, quando o texto fala exatamente o contrário. Pode ser que tenha havido um erro de calibragem em meu texto, pode ser que os interlocutores estejam querendo somente marcar posição.

Os que raciocinam como se todos os fatos fossem a tradução imediata da luta de classes e que portanto sempre há heróis e bandidos, me xingam porque meu texto deu mais importância às vítimas e aos responsáveis (ou irresponsáveis) do que aos bons e aos maus. Há os ativistas, que acham que meu academicismo me cega para o verdadeiro drama social e me conclamam a ir para a prática, que sou vacilão. 

Há quem prefira fazer análise política na base da denúncia e do espasmo verbal. Reclamam porque não verti lágrimas suficientes para os heroicos resistentes, não reconheci que partidos revolucionários ajudaram bravamente o movimento e não acusei os canalhas tucanos que esmagaram o povo pobre da periferia para acobertar o jogo sórdido que existe entre o Estado e os sugadores do sangue popular, as matilhas de lobos predadores, os especuladores e os exploradores. 

Me desculpem, não sei falar deste jeito. Acho que as coisas são mais complicadas e tento manter a conversa num plano razoável, para que se possa melhorar na compreensão do que acontece. Muito provavelmente, estou errado, mas não porque minha atitude seja errada, mas porque ela não produz efeito, murro em ponta de faca. A inteligência política reformista (revolucionária, se quiserem) e democrática parece hoje meio embotada, funciona de modo maniqueísta e aí fica difícil mesmo discutir. 

Mas vamos em frente que atrás vem gente e todos têm o direito de defender suas opiniões do modo que quiserem e puderem.
 
Com o intuito de dar sentido às linhas acima, segue abaixo o texto postado ontem no Face.

 
Não estava com vontade de discutir a operação Pinheirinho, mas acabei cedendo e vou fazê-lo rapidamente. Olhando-a sob os vários ângulos, só dá prá ver erro e incompetência. Não houve heróis nem bandidos ali. 


Ocupar terrenos vazios (ou casas, prédios, o que seja) é operação de risco. Quem não sabe disso é massa de manobra de lideranças irresponsáveis. Não é igual aos "Indignados" da Praça do Sol, ou à moçada do Occupy Wall Street. Não é porque se deva respeitar um sagrado direito de propriedade, ainda que esse um dia acabe por mostrar as garras. É porque se quer viver num local desprovido de infraestrutura mínima. Sem ajuda pública, a ação acaba por reproduzir e prolongar o estado de desigualdade em que estamos. Com ajuda pública, se institucionaliza o movimento e ele perde independência.

Não houve ingenuidade nem ignorância deste fato por parte dos que ocuparam o Pinheirinho há oito anos. Tanto que construíram um bairro por lá, com lojas, mercadinhos e igrejas. Deixou de ser ocupação. Ao longo do tempo, devem ter tentado negociar a consolidação. Talvez não tenham tido a habilidade necessária, certamente encontraram resistência e má vontade. Mas nos últimos tempos parece ter crescido no pessoal o desejo de encontrar uma saída negociada. Foi algo meio errático, porque ao mesmo tempo se fazia questão de proclamar uma disposição para resistir a qualquer custo. O movimento deve ter suas alas, e provavelmente alguns mais "radicais" atrapalharam o passo dos outros. Foram estes mais "radicais" que entraram em choque com a PM.

A Justiça decidiu e mandou a PM a campo. Mas que diabo de Justiça é esta, que não avalia as consequências sociais de suas decisões? Ali havia um bairro com milhares de pessoas. Gente pobre, que lutou prá construir algo. Oito anos! Não era evidente que uma operação militar provocaria reação? E que esta reação explodiria em choques e confrontos? Ou será que alguém acha que 2 mil soldados vão se comportar como carneirinhos diante de uma massa de 6 mil pessoas? Sabia-se disso tudo porque isso tudo era de conhecimento público. Mas não houve uma voz sensata que ponderasse e suspendesse a operação. A falta de flexibilidade causa espanto porque, no dia anterior, o Tribunal Regional Federal havia suspendido a reintegração de posse e também porque, uma semana atrás, um acordo entre as partes envolvidas já estava bem encaminhado. 

Conclusão da história: o que era para ser mero ato jurídico converteu-se em campo de batalha. Não havia inimigos nem “classes perigosas”, mas uma guerra terminou por eclodir.  O que era para ser ato localizado, pontual, converteu-se em tema nacional e eleitoral. Em suma, todos perderam (uns bem mais, com certeza) e as autoridades deram uma demonstração de inflexibilidade e incapacidade de avaliar cenários.
E os partidos, as lideranças e os movimentos democráticos, onde estavam nesta hora?