Tive a
oportunidade de ler, no último fim de semana, o discurso que Umberto Eco
proferiu em 20 de setembro de 2013, na Aula Magna de Santa Lucia, Universidade
de Bolonha, Itália, por ocasião das comemorações pelos 25 anos da Magna Charta
Universitatum.
O
discurso tem belas ideias em defesa do valor e da relevância cultural das
universidades no mundo contemporâneo. A principal hipótese é que a instituição
universitária contribui de forma decisiva para a defesa inteligente da memória
social e para a construção de identidades culturais.
O
discurso pode certamente ser contestado ou criticado em uma ou outra de suas
passagens, até mesmo por se tratar de uma proposição clássica, que trafega na
contramão do main stream
em que se vive dentro e fora da vida universitária. Mas seus pontos centrais
são poderosos, e ricos de possibilidades.
Fiz a
tradução e a reproduzo abaixo. Dada particularmente a situação por que passam
as universidades estaduais paulistas, penso que a leitura do texto pode ser
útil.
Por que as universidades?
Umberto Eco
Em setembro de 1988, 388
reitores provenientes de toda a Europa e além, firmaram a Magna Charta
Universitatum. A partir de então, aquele texto se tornou o ponto de referência
essencial acerca dos valores e dos princípios fundamentais da instituição
universitária.
A despeito dos mass media, frequentemente críticos do
papel da universidade em um mundo em que a Web parece perto de suplantar as
velhas instituições de formação, creio que a função da universidade é hoje mais
relevante do que nunca.
Vivemos um momento histórico em
que, não obstante a já longa vida da União Europeia como instituição, em muitos
países da Europa há quem duvide que a criação da unidade econômica por meio de
uma moeda única seja suficiente para desenvolver e sustentar a ideia de uma
identidade europeia.
Gostaria de lembrar que a ideia
mesma de uma possível identidade europeia nasceu em 1088, com a fundação da
primeira universidade do mundo ocidental, a Universidade de Bolonha. Naquela
época, a Europa era somente uma expressão geográfica que designava a porção
central do universo conhecido, seguramente mais destacada do que as ainda
místicas terras da Ásia e da África. A Europa de então, porém, não portava valores
políticos ou culturais. Havia o Sacro Império Romano, encarnado por Federico
Barbarossa; havia a Igreja de Roma, havia os reinos da França e da Inglaterra,
em feroz competição entre eles, e os pequenos reinos da Espanha, em luta contra
o domínio árabe; as primeiras Repúblicas marítimas e as primeiras comunas na
Itália, e o primeiro núcleo da Liga Hanseática: todos divididos por interesses
e idiomas diversos e unidos somente por um língua veicular, o latim medieval,
que todavia era falado exclusivamente pelos eruditos.
Foi precisamente sobre aquela
plataforma cultural que nasceram as universidades, único caso de migração
pacífica de estudiosos e estudantes: os clérigos itinerantes, que se deslocavam
de ateneu em ateneu, de nação em nação, de tal modo que nos séculos vindouros
encontraremos Erasmo, Copérnico, Goffredo de Vinsauf, Paracelso e Dürer em
Bolonha, e Buonaventura e Tomás de Aquino em Paris. Todos falavam a mesma
língua, os problemas debatidos pelos averroístas em Bolonha eram os mesmos
discutidos na Faculdade das Artes em Paris, e Marcilio de Padova dissertava com
Guilherme de Ockam e Giovanni de Jundun sobre questões políticas de importância
capital para o Império germânico.
As universidades formaram assim
o primeiro núcleo de uma futura identidade europeia; a Europa das universidades
deixou de ser somente uma expressão geográfica para se tornar uma comunidade
cultural.
Chegando aos nossos dias, e
pensando na globalização (fruto inegável de numerosos desenvolvimentos
políticos, militares, científicos e tecnológicos), não devemos esquecer que foi
através das redes universitárias que Fermi e seus colegas italianos fizeram com
que os resultados de suas pesquisas chegassem aos Estados Unidos, assim como Einstein
reuniu as experiências científicas europeias e americanas das três
universidades de Berna, Berlim e Princeton.
Creio que estas breves
recordações são suficientes para que se responda à questão “por que as
universidades?”. Nos últimos novecentos anos, elas têm sido a matriz de uma
identidade internacional e artífices dos capítulos mais criativos na história
da cultura ocidental.
Podem ainda ter um papel no
mundo globalizado de hoje?
Antes de responder permito-me
fazer uma citação bíblica.
No primeiro livro dos Reis,
capítulo 19, quando Elias se encontrava na caverna do Monte Horebe e foi então
chamado à presença do Senhor, “veio um vento fortíssimo que separou os montes e
esmigalhou as rochas”; mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento houve
um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto. Depois do terremoto houve
um fogo, mas o Senhor não estava nele. Não se pode encontrar Deus no rumor;
Deus somente se manifesta no silêncio. Deus não está nos mass media, jamais está nas primeiras páginas dos jornais, jamais
está na televisão ou na Broadway. Deus está onde não há agitação.
Esta máxima também vale para
quem não crê em Deus mas pensa que em alguma parte exista uma Verdade a ser
descoberta, um Valor a ser criado. Não se podem encontrar verdade e
criatividade em um terremoto, somente em uma pesquisa silenciosa.
No tumulto do mundo atual, os
únicos locais de silêncio, ao lado das sedes de meditação religiosa, são as
universidades. Elas ainda fazem parte daqueles poucos lugares em que é possível
um confronto racional entre diversas visões do mundo. Espera-se que nós,
universitários, combatamos – sem fazer uso de armas mortais – a interminável
luta pelo progresso do saber e da pietas. [Para lembrar: o romano ideal deveria possuir três traços
típicos: a virtus, um conjunto de
qualidades morais; a fides,
fidelidade e respeito; e a pietas, um
conjunto de regras de conduta e obediência. A pietas sintetizaria as demais. N.
do T.]
Não sou ingênuo a ponto de esquecer
que o conhecimento não traz automaticamente paz e misericórdia: a história nos
mostrou como as pessoas podem amar Brahms ou Goethe e ao mesmo tempo serem
capazes de organizar campos de extermínio. Mas essas mesmas pessoas, antes de consumarem
a sua solução final, tiveram de perseguir as universidades, uma a uma, subjugar
todas as mentes críticas: a universidade sempre representa um perigo para
qualquer gênero de ditadura.
Não raramente, grupos de
acadêmicos deram apoio ao colonialismo, ao racismo e à intolerância. Isto não
elimina que é precisamente no leito das universidades ocidentais e das
academias que o mundo moderno concebeu um novo modo de abordar as culturas e as
civilizações, que recebeu o nome de antropologia cultural. Foi graças aos
estudos dos antropólogos culturais do século XIX (que por sua vez se remetiam a
ideias introduzidas por Montaigne, Locke e pelos filósofos do Iluminismo) que
hoje sabemos da existência de outros modelos culturais, autônomos e orgânicos,
que são reconhecidos, compreendidos em sua lógica interna e respeitados. A
antropologia cultural, substituindo o conceito de raça pelo de cultura,
trabalhou em profundidade para que nos tornássemos mais conscientes das demais
culturas e do direito que cada cultura tem de sobreviver.
A antropologia cultural não
mudou o mundo. Enquanto os antropólogos nos ensinavam a reconhecer e respeitar
comportamentos culturais, religiões e costumes étnicos diversos dos nossos, o
mundo ocidental fabricava os Protocolos dos Sábios de Sião, ao passo que os
primeiros meios de comunicação, por intermédio dos romances populares e dos
filmes de Hollywood, difundiam a ideia do Outro como Mau: o indígena feroz, o
negro estúpido condenado a um destino de eterna escravidão graças à sua
irremediável inferioridade, o chinês com o rabinho de cavalo, etc.
Simultaneamente, porém, os
mesmos estereótipos eram desmontados no interior do ambiente universitário.
A universidade ainda é o lugar
em que podem proliferar confrontos e discussões, ideias melhores por um mundo melhor,
o reforço e a defesa de valores fundantes universais, não ordenados nas
estantes de uma biblioteca, mas difundidos e propagados pelos meios os mais
distintos.
A universidade é uma Força de
Paz! Basta pensar no projeto Erasmus, que prevê a criação de uma nova rede
internacional de clérigos itinerantes, os quais frequentemente se casam entre
si, preparando assim, ao menos na Europa, uma nova geração de cidadãos
bilíngues, imunes às seduções de qualquer tipo de nacionalismo.
Mas permitam-me mencionar, a
propósito dos deveres da universidade hoje, duas tarefas que considero urgentes
e fundamentais.
Com frequência nos é dito que
um dos riscos a que nos expomos e que cresceu com os mass media, especialmente entre as gerações mais jovens, é o de uma
crise da memória histórica. Sem memória não há sobrevivência. As sociedades
sempre se valeram da memória para conservar sua identidade, desde quando os
anciãos das tribos sentavam-se noite após noite embaixo de uma árvore para
narrar as ações gloriosas dos antepassados.
Quando, com um ato de censura,
cancela-se uma parte da memória social, a sociedade entra em crise de
identidade.
Neste sentido, as universidades
ainda são locais em que as memórias comuns podem ser inventariadas e
conservadas.
A memória não é somente
inventário, é também filtro. A memória histórica não é feita somente daquilo
que acreditamos ser importante recordar, mas também daquilo que pensamos dever
ser esquecido. Uma de suas principais
funções é a de operar como uma espécie de peneira.
Uma cultura, enquanto memória
histórica, não é somente um depósito de dados: é também o resultado de sua
filtragem e das capacidades que temos de descartar tudo o que consideramos
inútil ou não indispensável.
A história de uma civilização é
feita de milhões de dados que foram sepultados. Frequentemente nos damos conta
de que este processo comportou uma perda e de que, para recuperar as
informações desaparecidas, são necessários séculos. Nossos antepassados gregos
tinham perdido a memória da matemática egípcia e a Idade Média não recordava
boa parte da ciência grega. Analogamente, nós hoje nos esquecemos do
significado das estátuas da Ilha de Páscoa e muitas das tragédias citadas por
Aristóteles na sua Poética perderam-se para sempre.
Apesar disso, exceção feita a
estes incidentes indesejáveis, uma cultura precisa eliminar muitas informações.
Quais os nomes de todos os soldados que lutaram em Waterloo? O que foi feito de
Calpurnia, mulher de Cesar, depois dos Idos de Março? A cultura eliminou estes
dados para não sobrecarregar nossa memória histórica.
De resto, este processo de
apagamento não age somente na cultura, mas também em nossas vidas pessoais.
Jorge Luiz Borges escreveu um belo conto, “Funes o memorioso”, sobre um
personagem que se lembrava de tudo: toda folha que tinha visto desde criança,
toda palavra ouvida no curso de sua vida, todo sopro de vento que lhe havia
roçado a pele, toda frase que lera. E precisamente por causa desta memória
total, Funes era um idiota, paralisado pela incapacidade de filtrar e descartar
os resultados de suas experiências. Nosso inconsciente funciona porque remove.
Se, depois, alguma coisa nos perturba, pedimos a nosso psicanalista que
recupere aquilo que removemos por ser excessivamente embaraçante. Mas é
importante eliminar todo o resto: a alma é fruto desta memória seletiva; se
nossa memória fosse como a de Funes, seríamos animais sem alma, isto é, sem
identidade. Nossa identidade não é feita somente das coisas que recordamos, mas
também daquilo que conseguimos esquecer.
E no entanto uma cultura não se
limita a sugerir aos indivíduos que esqueçam aquilo que deveria ser rejeitado
como inútil; frequentemente esconde aquilo que eles deveriam recordar. Este é o
papel da censura, que assume muitas formas, até a da damnatio memoriae. Uma cultura, porém, pode censurar não só por
apagamento e reticência, mas também por excesso de informação. Sempre sustentei
que havia pouca diferença entre o Pravda
stalinista e a edição dominical do New
York Times: o Pravda censurava as
informações indesejáveis, o Sunday Times,
por sua vez, com suas 600 páginas que seguramente continham All the News that’s Fit to print, todas
as notícias que vale a pena imprimir, mas que com idêntica segurança não eram
lidas por inteiro por ninguém, sequer no arco de uma semana. Corremos o risco
de permanecer submersos pelo excesso de informação. A diferença entre o
silêncio e o rumor excessivo é de fato mínima.
Inegavelmente, no que diz
respeito ao Sunday Times, o leitor
bem informado tem condições de selecionar as informações pertinentes e de jogar
no cesto os suplementos que não lhe interessam, por exemplo, aqueles sobre o
mercado imobiliário, os esportes, casa e jardim, ou até mesmo o caderno
literário. Mas o que está acontecendo hoje com este excesso de informações que
é a Internet? O risco é de que nos tornemos como o cérebro de Funes. Até agora
a sociedade filtrava por nós os conteúdos através dos livros-texto e das
enciclopédias; com a Web, todos os conhecimentos e todas as informações
possíveis, inclusive as menos úteis, estão ali à nossa disposição.
Tentem perguntar à Web sobre um
tema, por exemplo a Shoah, o Holocausto. Não existe qualquer critério que nos
diga, numa primeira aproximação, se um site é obra de historiadores responsáveis
ou de um grupo filonazista. E se uma pessoa culta consegue compreender de que gênero
de site se trata, como se arranjam os menos informados que, pela primeira vez,
buscam na Web algumas noções básicas sobre o evento? A incapacidade de filtrar
comporta a impossibilidade de discernir.
Somente as universidades (e
mais em geral as instituições de formação) podem nos ensinar como selecionar. É
preciso inventar, e difundir, uma nova arte da depuração. Caso contrário, sem
uma Enciclopédia Unificada das Ciências, todos terão direito de organizar sua
própria enciclopédia: teremos a Enciclopédia New Age, a Enciclopédia Nazista, a
Enciclopédia Astrológica, etc. Com tal fragmentação do conhecimento, os sete
bilhões de habitantes do planeta poderão produzir outros tantos métodos de
seleção ideológica e sete bilhões de línguas diversas, intraduzíveis entre si.
A Web poderia se converter numa Torre de Babel, na qual se falariam não
setenta, mas sete bilhões de línguas individuais.
A presença das universidades
pode ser uma garantia para os inúmeros jovens (e menos jovens) que estão em
busca de uma enciclopédia confiável. Criar uma Enciclopédia Comum não equivale
a impor um pensamento único. É um terreno compartilhado sobre o qual verificar
e comparar toda diferença portadora de riqueza. A universidade é o único lugar
em que se pode aplicar corretamente uma abordagem unificada da diversidade.
Mas as universidades são também
um modo de oferecer um excesso de filtragem. As culturas (ou pelo menos a nossa
cultura ocidental, com sua perspectiva filológica) têm interesse em recuperar
dados cuja perda nos parece ser uma desventura. Por isso temos necessidade do
trabalho de especialistas, historiadores ou arqueólogos: pedimos a eles que
ressuscitem conceitos e experiências que caíram acidentalmente na obscuridade.
Com este ato, a memória coletiva pode fazer com que floresçam novamente os
dados perdidos e pode sistematizá-los de novo, senão em uma Enciclopédia Comum,
pelo menos em uma enciclopédia setorial.
Deste modo, uma cultura madura
escolhe pôr algumas informações em estado de latência. As informações excessivas
são, por assim dizer, congeladas de modo a que, conforme a necessidade, os
experts possam reaquecê-las em um ideal forno de micro-ondas e fazer com que
retornem, com o objetivo, por exemplo, de decifrar um antigo documento recém-descoberto.
Os locais de latência são
assimiláveis ao modelo da biblioteca ou do arquivo, indispensáveis containers de uma sabedoria que pode ser
revisitada, mesmo que não tenha sido frequentada por séculos. As universidades,
portanto, não são somente lugares de filtragem indispensável, mas também, com
suas bibliotecas e seus arquivos, locais que custodiam as indispensáveis
informações latentes.
Gostaria de terminar com a
derradeira razão pela qual o papel das universidades ainda é fundamental,
sobretudo em um mundo que se torna sempre mais virtual: as universidades estão
entre os poucos lugares em que as pessoas ainda se encontram face a face, em
que jovens e estudiosos podem compreender quanto o progresso do saber necessita
de identidades humanas reais, e não virtuais. [Tradução de Marco A. Nogueira]
11 comentários:
Muito bom! Parabéns pela tradução e divulgação.
Como sempre, brilhante e comovente, Umberto Eco traduz um sentimento compartido por todos que amam o real conhecimento compartido. Obrigada pela tradução e post!
Como sempre, brilhante e comovente, Umberto Eco traduz um sentimento compartido por todos que amam o real conhecimento compartido. Obrigada pela tradução e post!
Parabéns pela tradução! Um texto muito bom que nos leva a refletir de forma ampla, não só a situação da Universidade, mas da própria sociedade a qual estamos inseridos.
Belo texto!! Obrigado pela divulgação. Há um pequeno senão na tradução; Eco fala de sete bilhões (sette miliardi) de pessoas e línguas, não de sete milhões.
Abraço
Claro, Thiago! Sete bilhões. Obrigado pela leitura atenta e pela manifestação. Abraço
Boaventura, em português, e não "Buonaventura". No mais, excelente trabalho!
Resgatar a reflexão em mais um momento de crise.............. Parabéns pela tradução.... Profa. Aureluce...
Obrigada pela tradução e solidariedade em compartilhar.
Parabens pela tradução, Marco. Texto rico e instigante, nos anima ainda a viver a, por vezes, entediante vida Universitária.
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