domingo, 24 de fevereiro de 2013

Redes, partidos e política




Compreensível o interesse despertado pelo lançamento da Rede Sustentabilidade, o novo partido articulado pela ex-senadora Marina Silva, entre outros políticos e ativistas. Se o quadro partidário brasileiro provoca tédio e desesperança, nada como uma proposta recheada de boas intenções para que se espalhe a sensação de que algo pode ser feito para que se melhore a política hoje prevalecente.
O novo partido surge propondo-se a ser diferente na estrutura (uma rede), nos procedimentos e nas ideias. Não partiu da arregimentação de lideranças expressivas ou bancadas parlamentares preexistentes. E não está poupando energia para convencer a opinião pública de que veio para valer, não é mero capricho de seus idealizadores. Lançou-se, porém, com uma meta clara: dar abrigo e sustentação à futura candidatura presidencial de Marina Silva, principal justificativa para que a operação fundacional fosse desencadeada agora, quando já é nítido o rufar dos tambores das eleições de 2014, um frenesi eleitoral aparentemente intempestivo e prematuro mas que tem sua razão de ser, como observou nessa página o cientista político  Luiz Werneck Vianna (Estado, 16/02/2013).
Tal justaposição de objetivos – criar um novo modo de fazer política e viabilizar uma candidatura – fará, portanto, com que os articuladores da proposta tenham de agir para demonstrar que terão disposição para amassar o barro da política dura, que não se sujeita nem obedece a princípios vagos, chefes supremos ou calendários eleitorais. Não à toa o discurso de Marina insiste em enfatizar que o novo partido existirá “para questionar a si, não para disputar uma eleição” – não terá “espírito de manada”.
Cercada de expectativa, a Rede chamou atenção pelo inusitado de algumas de suas ideias. Não aceitará, por exemplo, contribuições financeiras que provenham de negócios que agridam ou prejudiquem a saúde e o meio ambiente (bebidas alcoólicas, cigarro, armas, agrotóxicos), o que mostra uma face simpática e sensível mas pouco clara quanto a seus efeitos efetivos. A hipótese certamente é que o partido consiga sobreviver eleitoralmente graças à contribuição expressiva de seus militantes e simpatizantes, o que parece romântico demais. Vale o mesmo para a pretensão de limitar a reeleição de seus futuros parlamentares (uma em cada casa parlamentar) e de organizar um conselho de cidadãos que monitore com independência a sigla e seus dirigentes. São ideias interessantes mas de efeito impreciso, com o agravante de que podem sugerir que o partido pretende estacionar fora da política institucionalizada, feita e vivida pelos brasileiros. Tanto a questão é delicada que alguns de seus propositores, a começar da própria ex-senadora, têm procurado deixar claro que o novo partido não fugirá das alianças (desde que sejam “pontuais e em torno de ideias”) e que trabalhará para criar novas correlações de forças no país, em vez de deixar tudo como está.
O mais importante, porém, é a proposta abrangente da nova legenda, antes de tudo sua disposição de funcionar como uma rede que promova a articulação entre políticos de diferentes orientações partidárias e, ao mesmo tempo, impeça que o partido concentre todas as decisões políticas e fique engessado em torno de seus próprios interesses. A perspectiva tem potência, especialmente porque proclama que é mais importante privilegiar aquilo que une e é comum do que aquilo que distingue e opõe. Se a questão é agir “pelo bem do país” ou por uma causa magna que esteja acima de partidos e facções, a estruturação em rede faz total sentido. Foi mais ou menos assim que Joaquim Nabuco definiu a estratégia do abolicionismo nos anos 1880: ativar um movimento, uma opinião, uma agitação para “desagregar fortemente os partidos existentes, até certo ponto constituindo uma igreja à parte composta dos cismáticos de todas as outras”.
Em seu discurso no ato de lançamento do partido, Marina Silva pareceu emular essa posição de Nabuco: “Não seremos nem oposição nem situação ao governo de Dilma Rousseff. Se a presidente estiver fazendo algo bom para o Brasil, nossa posição será favorável”. A Rede pretende "quebrar de fato o monopólio dos partidos na política”, substituindo-o pela ação da cidadania. É um palavrório vago. A questão é saber se esse caminhar no fio da navalha será viável diante da natureza “partidária” da política, de sua essência agonística de luta pelo poder, da falta de gente que trabalhe desinteressadamente por uma causa maior.
Apresentar-se como novidade é fácil. Difícil é dar corpo e vida à nova proposta, traduzi-la em termos políticos, intelectuais e organizacionais. Não será simples criar um partido numa época de homens partidos e pobres de ideias políticas. Parece faltar espaço e oxigênio para que se agregue a essa criação um projeto de sociedade, sustentado por uma análise criteriosa do mundo e do país, que não só revele a estrutura dos problemas como os acomode em uma agenda articulada. Em política, não é novo o que se proclama como tal, mas o que produz coisas novas a partir da transformação daquilo que existe. Será preciso propor soluções positivas a partir de uma análise concreta do existente. Sem isso, a Rede irá girar em círculos. 
Mas é ainda mais fácil falar mal daquilo que se propõe como novidade. De um modo ou de outro, querendo ou não, o novo incomoda o que está estabelecido e desafia hábitos mentais, rotinas e posições consolidadas. Difícil mesmo é submeter o novo à crítica ponderada e criteriosa, ver se o que se propõe algo de aproveitável, concedendo-lhe algum crédito de confiança para mostrar a que veio. Se isso não é feito, tudo se resume a bate-boca, a torcida contra ou a favor. E não se avança em direção nenhuma, ficando todos recolhidos ao mesmo ramerrame de sempre. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/02/2013, p. A2].
 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Gramsci cobiçado

Acabo de ler o excepcional livro de meu amigo Guido Liguori, Gramsci conteso. Interpretazioni, dibattiti e polemiche 1922-2012 (Roma, Editori Riuniti University Press, 2012). Na verdade, foi uma nova leitura, pois se trata da segunda edição de um texto publicado em 1996 e que agora reaparece atualizado e reforçado.
O título -- que poderia ser traduzido por "Gramsci cobiçado", ou Gramsci em disputa, algo assim -- diz muito do que pretende o autor: mostrar e analisar como, ao longo do tempo, Gramsci foi um marxista disputado por muitas correntes de pensamento e posturas políticas. A tal ponto que em determinados momentos pareceu que ele estaria sendo ejetado para fora do universo marxista-comunista, como quando Croce (o filósofo hegeliano italiano) escreveu que Gramsci "foi um dos nossos". Liberais, socialdemocratas, comunistas de A a Z, conservadores e até gente de direita foram a Gramsci reivindicar algum tipo de sociedade com ele, com certos de seus conceitos ou então contra ele.
Todos, de certa forma, dialogaram com Gramsci. E continuam a fazê-lo, de modo crescente.
A recepção de Gramsci disseminou-se pelo mundo, sem fronteiras, o que é uma demonstração cabal do fascínio e da amplitude de seu pensamento. E ainda que tenha sofrido oscilações, nunca deixou de estar firmemente ancorada na tradição marxista, da qual ele próprio se via como parte. Hoje, o marxismo de Gramsci está revitalizado e poucos são os que o contestam. Para isso, contribuíram as pesquisas desenvolvidas por estudiosos espalhados por diversos países, referenciados especialmente pelo que fazem a Fondazione Gramsci (onde está Giuseppe Vacca) e a seção italiana da International Gramsci Society, da qual Liguori é o principal animador.
Liguori também é professor de História do Pensamento Político Contemporâneo da Universidade da Calábria e redator-chefe da revista de cultura política Critica Marxista, de Roma.
Seu livro passa em revista a história da recepção de Gramsci, especialmente na Itália. Acompanha 90 anos de interpretações, polêmicas e debates, fornecendo assim um mapa para que nos orientemos e possamos entender a difusão da obra de Gramsci, assim como as diferentes "traduções" que conheceu. O Gramsci de Bobbio, de Althusser, do pessoal dos cultural studies e dos subaltern studies, da moçada politicista, dos antropólogos, pedagogos e etimologistas, e assim por diante.
Como, no Brasil, Gramsci é uma referência importante e está presente em tantas vertentes político-partidárias, intelectuais e de atuação profissional, o livro de Liguori certamente faria muito sentido por aqui. Até porque, no correr de suas páginas, não encontramos somente uma análise das diferentes "leituras" recebidas por Gramsci, mas também um caminho a mais para pensarmos em sua teoria, em seus conceitos e no significado de sua obra.
Gramsci conteso é um convite à reflexão sobre o legado do marxismo para os nossos dias, legado esse visto pela obra de um de seus mais importantes representantes. É dedicado à memória de Carlos Nelson Coutinho, o intelectual marxista que mais contribuiu para tornar Gramsci conhecido e estudado no Brasil.